Aparecido Raimundo de Souza
MEU NETO JOÃO EDUARDO está feliz da vida depois que descobriu o seu pintinho. Desde então,
novidades uma atrás da outra. A começar pela mais nova, ou seja, a de não saber
o que fazer com ele. Para que servia o tal pintinho? Chegou a me perguntar, de
chofre, levado pela curiosidade da inocência fluindo pôr todos os poros: “vovô
Licido” (ele não sabe pronunciar Aparecido e, pôr essa razão, no entendimento
de sua cabecinha em formação passei a ser à carga de um batizamento espontâneo,
“vovô Licido”) -, “vovô Licido”, como é que eu vou usar esse negócio?.
A galera aqui em casa só faltou me bater. Marlúcia, minha “ex”, avó do
guri, emprestando estranheza às palavras, me xingou todinho numa gulodice de
fazer dó. Todinho aqui se subtenda da planta dos pés à raiz dos cabelos. Disse
com todas as letras, no seu reclamão mal programado, que o guri era pequeno
demais para compreender essas coisas de pintinho. Amanda, minha filha, mãe do
ilustre jovenzinho, fez igualmente rostinho de zanga, porém, no final das
contas, enfurnada nos laços virtuais do seu aparelho celular, se conformou.
Suas preocupações passaram batidas como nuvens claras num céu de brigadeiro.
Apesar disso e da balburdia toda formada em torno do pintinho do meu
neto, estou contente. Feliz, realizado. João Eduardo rindo de um canto a outro
da boca, falando, como sempre, pelos cotovelos, mostrou o pintinho para os
tios, para os primos e primas e até para os coleguinhas da rua. A bisavó, ou
(carinhosamente “Vovó Cobrinha”), mãe do pai da minha “ex” ressalvando também,
de passagem, ex-sogro, voou mais longe. Viajou na maionese. Em sua ancoragem
transitória em torno do assunto, torceu o nariz. Carafeiou os modos à Dercy
Gonçalves. Na pele da dita, soltou a língua, atropelou cobras e lagartos...
Para ela, o pintinho de João Eduardo se consubstanciava num evento desastroso,
como se tivesse pintado no pequeno mundinho do meu neto, a mente em formação,
um elefante entre galinhas, um touro tropeçando por cima de bercinhos com
nascidos recém-desmamados dos seios de suas respectivas mães.
Antes da concordância derradeira, aboletada ainda no seu ritual de
passagem pelo meu escutador de novelas, me escrachou barbaramente. Rezou um
terço com todas as contas do rosário, observando que eu poderia ter falado ou
pior, tocado ou mostrado ou ainda, dado a conhecer, ao infante, uma coisa mais
educativa. Não liguei, não dei à mínima. Entendo, pelos anos vividos, pelo
menos sabendo da existência do pintinho, João Eduardo crescerá uma criança
sadia, esperta, mais do que se mostra às pessoas hoje e, sobretudo, seguirá
seus caminhos porvindouros não renegando a segundo registro as pequenas coisas
boas da vida. E quando amanhã, se fizer adulto...
Fui levá-lo na escola. Alegria em profusão. Antes de chegar à porta da
creche, João Eduardo se desdobrou tagarelando, ou melhor, gritando, com os
coleguinhas que encontrava pelo caminho (a maioria companheirinhos com os quais
dividia o mesmo espaço num segundo lar comum. A escola, para quem não sabe, é
um segundo lar comum) o bate papo não outro senão o bendito pintinho.
- Du, ele faz piu, piu, piu, piu – indagou um dos moleques a certa
altura?!
João Eduardo me encarou serio:
- “Vovô Licido”, meu pintinho faz piu, piu, piu, piu?
- Não sei! Acho que ele faz sim...
Dentro da confraternização da sala de aula, irmanada na sociedade
escolar, uma confusão maior se formou estupenda. Fiquei sabendo depois, o
furdunço se propagou ao tamanho de um desespero inesperado que chegou de
mansinho, sem prévio aviso. João Eduardo contou para toda a turminha, do seu
pintinho, acendendo aqui e ali, a curiosidade criminosa de outras cabeças
adultas com ideias perversas, o que deixou as professoras com os semblantes
fechados. Na saída, às cinco horas em ponto, minha “ex” foi buscá-lo e, logo
que a coordenadora avistou a avó, chamou-a com ênfase, os olhos piscos no
interstício da porta de acesso, deixando transparecer às mãos nervosas e no
rosto branco como uma vela acentuada expressão de nervosismo.
Queria saber, à língua anfíbia... Na verdade buscava como numa
reciprocidade de proteção aos demais que frequentavam o mesmo espaço,
esclarecimentos pormenorizados a respeito do mais novo personagem que bailava
na ponta da língua do João Eduardo. “Dona Lucia, perdão, dona Marlúcia, o tempo
todo Dudu não fez outra coisa a não ser falar do seu pintinho...”.
E a Marlúcia bondosa como sempre, carismática e gentil explicou devagar,
pausadamente, aclarando as objeções da jovem dirigente. Mais calma, do alto do
seu posto de comando, embora uma nuvem de anseios incontidos continuasse a lhe
pendurar no rosto uma maquiagem de coloração vencida por sobre a pele molengada
e sem rigidez, como se quisesse se desculpar pelo incômodo que houvera
provocado em cima de uma situação tão banal que não requeria procedimento tão
devasso, a autoritária serviçal sorriu sem graça e pediu mil desculpas:
- Foi o avô – completou, por fim, a Marlúcia, sem perder a meiguice do
sorriso franco. Imagine! - Foi o avô que teve essa ideia. Comprou na feira de
domingo e deu de presente ao neto.
Acredite moça, o bichinho pia o dia inteiro, pia sem dar um minuto de
folga na minha cabeça. Esse danado desse pinto era só o que me faltava!
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, do Rio
de Janeiro. 29-10-2019
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