É difícil identificar caminhos alternativos
para revitalizar um grande partido político que pode, deve e tem de fazer muito
mais para transformar um país afundado em décadas de esquerdismo.
Gabriel Mithá Ribeiro
Os maus resultados eleitorais
de 2019 (europeias e legislativas) agravaram uma tendência continuada erosão
social do PSD. Por isso, mais do que a disputa da liderança está em causa a
dissolução progressiva da identidade coletiva do partido. O perfil muito
distinto e combativo dos dois principais candidatos, Rui Rio e Luís Montenegro,
é um ótimo ponto de partida, sem desconsiderar o perfil de Miguel Pinto Luz e
de outros eventuais candidatos que venham a surgir.
Nessas circunstâncias, ainda
que o debate seja interno, discutir o destino do PSD tem a grande vantagem de
ser sinónimo de se discutir o destino de Portugal, país que, tal como o PSD,
necessita de se reinventar para quebrar o estado de estagnação em que mergulhou
desde inícios do século XXI.
Por muito fortes que sejam as
tentações de fuga das diferentes candidaturas ao princípio da realidade, o
essencial do que vai estar em jogo converge na busca de respostas internas à
questão: o PSD é um partido de direita ou de esquerda?
Liberto-me desde já da palavra
ambígua centro proposta por Rui Rio, ao contrário de Luís
Montenegro que foi mais claro. Isso porque os termos direita e esquerda possuem
tanto mais valor – moral, analítico, ideológico, político, social – quanto
menos adjetivados (moderada, centro, radical, extrema), tal como
quaisquer conceitos que servem o rigor do pensamento. A sua utilização
adjetivada (como situar o partido ao centro) subverte o ponto de
partida e o essencial das discussões, uma vez que a adjetivação é propícia ao
desvio do foco do essencial para o acessório, a fala vazia que mata a
dignificação e o valor social da ação política.
É importante que fique claro
que as sociedades funcionam por representações sociais, e estas ou são orientadas
por referentes simples e claros para o senso comum, ou não são socialmente
funcionais. Recomendo a leitura do psicólogo social Serge Moscovici.
É também tempo de uma disputa
interna com um profundo sentido histórico porque o PSD há anos que se arrasta
num estado de esgotamento do primeiro ciclo histórico após a sua fundação.
Entre 1974 e a atualidade existe, no mínimo, o intervalo duas gerações
balizadas entre avós e netos.
Além desse dado ser
significativo, nesse intervalo histórico o país e o mundo sofreram
transformações profundas. Portugal redirecionou a sua orientação estratégica do
império ultramarino para a Europa, para a Comunidade Económica Europeia (CEE)
que entretanto se transformou em União Europeia (UE); implodiu a superpotência
URSS e acabou a Guerra Fria; a governação de José Sócrates (2005-2011) deixou
latente o esvaziamento da dignidade do exercício do poder na democracia; a
China ganhou ascendência no sistema internacional; ocorreram transformações um
pouco por todo o mundo, incluindo o fim do apartheid na África do Sul, as
presidências contrastantes entre Barack Obama e Donald Trump, nos EUA, ou entre
Lula da Silva e Jair Bolsonaro, no Brasil; as populações do Ocidente
envelheceram.
Apenas alguns dos sintomas da
profunda reinvenção das realidades vividas que tornam absurdo ambicionar
congelar uma identidade social no seu tempo originário de fundação, muito em
especial quando se trata de um partido político fundado no auge soviético da
Guerra Fria, 1974. Num país marcado por instituições frágeis, um grande partido
político não pode fugir à obrigação de se reinventar para garantir que, apesar
de frágeis, as instituições não quebrem e possam, também elas, reinventar-se.
Faz sentido recuperar Gabriel
Almond e Sidney Verba. Em 1963 clarificaram o que se entende por cultura
cívica. Resumiram-na à arte de saber reinventar um destino coletivo através
do estabelecimento de compromissos equilibrados entre a tradição e a
modernidade. Civismo significa que a última não rompe com a primeira, antes incorpora
elementos daquela em novos contextos.
Foi a capacidade persistente
de compromisso entre o passado (ala liberal do marcelismo) e o presente (pós 25
de Abril) que conferiu vitalidade política e social ao PSD à nascença com
Francisco Sá Carneiro, depois revigorada, primeiro, por Aníbal Cavaco Silva e,
mais tarde, por Pedro Passos Coelho. É tempo de procurar dar novo folego a essa
tradição.
A diferença é que os dois
ciclos de renovação referidos ocorreram em contextos em que era possível seguir
lógicas latentes em matéria de grandes princípios do partido, ou não havia
grandes pressões que apontassem noutro sentido. Hoje tudo mudou, dentro e fora
do partido. O contexto torna inevitável uma discussão manifesta,
intencional, às claras aos olhos dos militantes e, não menos,
da opinião pública sobre a razão de ser do partido (moral, ideológica,
política, social). Os dois principais candidatos apresentam lógica
substantivamente distintas, o que será muito útil.
Cheguei a Portugal em 1980 e a
minha ligação ao PSD, partido político no qual sempre votei desde que me
naturalizei (1986) e do qual me tornei militante (2005), foi gerada por uma
carga emotiva-afetiva nascida no dia da morte de Sá Carneiro, filiação que se
foi consolidando ao longo do tempo. Assinalo que carga emotiva-afetiva é a
regra de ouro da pertença a uma identidade social como um partido político.
Nas duas primeiras décadas em
que abracei essa filiação identitária, para mim ser de direita ou ser de
esquerda não era relevante ou, pelo menos, a questão era difusa. A identidade
PSD chegava e sobrava. Essa era, à época, a magia agregadora do partido.
Como o lado subjetivo da
condição humana não é estático no tempo, as décadas seguintes impuseram
mudanças substantivas no meu olhar sobre a natureza da política. Na essência,
elas são fruto da conjugação entre, por um lado, a crise financeira e econômica
internacional iniciada em 2007-2008 e, por outro lado, a governação socialista
patológica de José Sócrates (2005-2011). Nos dois casos as sequelas persistem.
Daí em diante, a minha consciência passou a confrontar-me com a necessidade de
uma definição clara em que tudo se foi resumindo ao dilema entre ser de direita ou
ser de esquerda. A matéria tornou-se crucial para a minha dignidade
pessoal, para a minha tranquilidade mental, moral e intelectual.
Um dilema dessa natureza mal
resolvido gera riscos de quebra emotiva-afetiva se o sentido do percurso do
sujeito individual (eu) se tornar dissonante do sentido do percurso do sujeito
coletivo ao qual o indivíduo se filiou (PSD). Acontece o equivalente quando as
relações familiares entram em ruptura. É o que está eu jogo na atual disputa
interna na relação entre mim e o meu partido político.
E tudo indica que estou muito
longe de ser um caso singular. É por isso que o debate interno no PSD não pode
escapar à busca de respostas para o reencontro entre a alma do partido e
a intimidade afetiva, emotiva e normativa dos seus militantes. É preciso não
negar o óbvio: o PSD parte para esta disputa interna fortemente fragmentado.
Não porque tenha de ser assim, antes por causa da falta de frontalidade em
debater o assunto.
No que me toca, hoje não tenho
dúvidas que sou e serei de direita para o resto dos meus dias. E cheguei a um
ponto em que me é impossível não conceber a atual esquerda como algo de
doentio, patológico.
Mas falta-me a outra metade.
Só poderei desfazer as minhas dúvidas da relação afetiva com o meu partido
quando tiver a certeza que a minha interpretação íntima e consciente do mundo
que me rodeia, e do qual sou parte integrante, deixou de ter espaço no interior
do PSD. Mais uma vez, estou seguro que não estou solitário, caso contrário o
partido não vivia uma crise endêmica.
Todavia, tenho idade para
saber que as instituições significativas para a identidade pessoal de cada um
de nós nas suas diferentes dimensões – família, igreja, pátria, política, entre
outras – não foram criadas para que as abandonemos, antes para que contribuamos
para que elas sejam melhores a partir do seu interior. É por isso que é
justíssimo que quem as abandone seja penalizado. Se não existirem custos
(pesados) para quem abandona a sua instituição, e se quem fica não gera
pressões ostracistas (sérias) sobre quem abandona, então a instituição não tem
grande valor moral e cívico e, por isso, pode desaparecer. Albert Hirschman
explicou isso em 1971.
A árvore dos notáveis e a
floresta dos comuns
Um dos vícios que impede os
indivíduos lidarem com a complexidade do real é o de confundirem a árvore com a
floresta. Para compreender as sociedades, as suas instituições e identidades
sociais (como os partidos políticos), não basta captar o discurso e o
pensamento dos notáveis (líderes, intelectuais, gente da comunicação social),
mas também e sobretudo o discurso e o pensamento de senso comum, dos indivíduos
que partilham a mesma identidade mas que se limitam a vivê-la no dia-a-dia.
No panorama partidário
português, o PSD integra os partidos cujas lideranças usam e abusam desse vício
na gestão da identidade coletiva. A chegada de um novo líder corresponde, por
norma, a reconhecer-lhe legitimidade para, por exemplo, situar o partido mais à
direita, de forma latente ou manifesta. Segue-se outro líder que possui a mesma
legitimidade, porém para situar o partido mais à esquerda. Depois virá outro
líder que voltará a mudar. Por aí adiante e sem debates coletivos sólidos.
Tal atitude das lideranças
mais não é do que uma escola de atropelos dos sentimentos mais íntimos que
justificam a filiação voluntária dos indivíduos a uma dada identidade
partidária, sejam militantes ou meros simpatizantes. Como nas famílias, nas
igrejas ou nos clubes desportivos, entre outros, os grandes referentes afetivos
e emotivos são cruciais e têm de ser estáveis no tempo para gerarem confiança
e, com ela, instituições sólidas. No PSD hoje acontece justamente o oposto e de
forma ostensiva.
Até porque o partido nasceu de
uma falha original, a de possuir um rótulo identitário de esquerda para
ambicionar consolidar o essencial da sua base sociológica à direita. Tal
ambiguidade revelou-se fértil enquanto esse jogo foi latente. Porém, o século
XXI está a agravar continuadamente as tensões ideológicas entre direita e
esquerda e, com isso, a própria realidade transformou o que era fértil em
estéril e fragmentador. O sociólogo Max Weber explicou os efeitos paradoxais da
ação política no decurso do tempo. O debate interno no PSD deve ter isso em conta.
Vejam-se os riscos em que hoje
incorrem os partidos marcados pela dissonância moral, identitária, cognitiva
entre o que verbalizam e o que são. Por exemplo, um presidente de um grande
partido afirmar que ele e os que representa não são de direita e, numa noite
eleitoral menos feliz, a opinião pública é confrontada com uma leitura dos
resultados em que predomina a tese da derrota da direita na
qual pontificam esses líder e partido. Estes, por seu lado, não negam
veementemente o pressuposto de que se a direita foi derrotada isso
não é com eles. Deve ser difícil descobrir sintoma mais claro de uma relação
esquizofrênica entre a autodefinição identitária e o sentido contrário que uma
sociedade em peso atribui à identidade desse mesmo sujeito individual ou coletivo.
Se de algumas árvores
(individuais) do pensamento do PSD sabemos muito, pouco ou nada sabemos da
floresta (do pensamento coletivo). Num tempo de narcisismo intelectual, nunca
se fez um trabalho fidedigno sobre o que pensam e como pensam os militantes,
simpatizantes e votantes comuns do PSD sobre um conjunto de temas-chave que
permita caracterizar o sentido da pertença coletiva ao partido. Em torno, por
exemplo, de temas como as relações estado/sociedade, a identidade nacional, o
apoio aos desfavorecidos, o tratamento das minorias (raciais, étnicas,
religiosas), a imigração, a autoridade/segurança, os costumes, a propriedade
privada/pública, os impostos, entre outros.
Caracterizar esse conhecimento
implica um trabalho de investigação que parta de um conjunto de pressupostos
teóricos bem definidos, que seja suportado numa orientação metodológica
consistente de modo a permitir um conjunto de recolhas empíricas qualitativas
que incluam, por exemplo, entrevistas abertas, registos do terreno diversos, observação
participante. Este tipo de investigação empírica qualitativa é exigente, não
permite conclusões de hoje para amanhã e tem como regra de ouro evitar ao
máximo condicionar o sentido do discurso/resposta dos interlocutores. E estes
devem ser sobretudo pessoas comuns, apenas excecionalmente notáveis.
Na encruzilhada identitária em
que o PSD se encontra, será extraordinariamente útil a curto prazo um debate
frontal entre os notáveis sobre se o partido é de direita ou de esquerda, assim
como a médio e a longo prazos é fundamental que se avance para estudos
sistemáticos, e estendidos no tempo, sobre o pensamento de senso comum dos que
partilham a identidade do partido.
É difícil identificar caminhos
alternativos para revitalizar um grande partido político que pode, deve e tem
de fazer muito mais para transformar um país afundado em décadas de
esquerdismo.
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos
Africanos, Observador,
25-10-2019
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