E não é possível continuar a tratar hoje
sociedades inteiras, para mais envelhecidas, como se se tratasse de um bando
infantil, irresponsável, incapaz de pensar por si mesmo.
Gabriel Mithá Ribeiro
Não existe dignidade humana
sem memória, tal como não existe consciência sem memória. Ambas sustentam a
moral e, em particular, a moral social, isto é, os princípios que orientam e
regulam a vida quotidiana sem os quais as sociedades não são viáveis.
Todavia, antes de tudo o resto
está o pressuposto de a memória apenas ser verdadeiramente humana quando é
ambivalente e complexa e, para que assim seja, as sociedades devem permitir e
incentivar o alargamento dos campos de significação, o inverso do afunilamento
da memória em determinados núcleos ou determinados sentidos impostos por
tutelas políticas, culturais, religiosas, institucionais.
Os que protegem os indivíduos
de se auto confrontarem com a complexidade e ambivalência das suas memórias
individuais ou coletivas – por exemplo, impondo que se preserve apenas a
dimensão negativa das memórias de um dado ciclo histórico e interditando a
dimensão contrária, ou o inverso – podem propalar a sua luta no caminho da
virtude, porém o que estará em causa é um caso em que o manifesto (o acidente)
contraria o latente (a substância), o doublespeak magistralmente
tipificado por George Orwell.
Esse doublespeak é
o instrumento que impõe, pela sua natureza, formas agressivas de violência
contra a dignidade mais elementar da condição humana, uma vez que fica apenas
admitida meia-memória, meia-consciência, meio-ser humano. É quase só a isso que
fica reduzida a condenação da existência, em Portugal, de um Museu de Salazar
ou a imposição de condicionamentos apriorísticos, sempre pela esquerda, dos
conteúdos de um Museu Interpretativo do Estado Novo.
Tal violência psicológica
imposta por uma elite circunscrita a toda uma sociedade, ou conjunto de
sociedades, fica ainda mais ostensiva num contexto em que o Parlamento Europeu, no passado dia 19 de setembro, equiparou o comunismo ao nazismo.
Ainda que tal condenação chegue com décadas de atraso, ela força a que se
repense o lugar histórico do Estado Novo na identidade portuguesa, ou na
identidade dos povos do antigo império ultramarino.
Que se saiba, não existem
suportes teóricos, conceptuais ou evidências históricas que alguma vez possam
equiparar Salazar e o seu regime a Hitler e ao nazismo, ou a Estaline e ao
comunismo, e foi sobretudo o comunismo o alvo da repressão política durante o
salazarismo. Isso é bem mais do que um mero detalhe, trata-se de matéria
substantiva.
Jamais estará em causa o
branqueamento de uma indiscutível ditadura e da sua violência, a de Salazar,
todavia isso é tão importante quanto a necessidade de recusar a falsificação da
natureza dessa mesma ditadura, atitude que se arrasta desde 1974, assim como importa
recusar a sua desinserção do contexto histórico do avanço do comunismo.
Se os resistentes comunistas
foram inegáveis vítimas do regime, a situação não difere do sofrimento de
milhões de indivíduos comuns que, em África e em Portugal, se viram arrastados
na enxurrada de uma descolonização para a qual não foram consultados. Até
agora, as mortes e as perdas irreparáveis (morais e materiais) dos últimos
continuam a ser tratadas como lixo humano escondido debaixo do tapete.
Essa tipologia de relação
patológica com o passado histórico prolonga no presente consequências sociais
desumanas.
Veja-se como académicos,
escritores, músicos, artistas, políticos, entre outros da elite de esquerda há
décadas impõem ao senso comum, de forma obsessiva e por diversas vias, olhares
que obliteram certas dimensões da memória social. Do alto do seu narcisismo, as
mentes tutelares de esquerda determinam que aquela época histórica é
boa, aquela outra é má; naquele período histórico só permitimos que se procure
o negativo, mas naquele outro só admitimos a preservação da memória do que foi
positivo; este ditador e a sua violência são legítimos, porém aquele ditador e
a sua violência têm de ser diabolizados.
Tal gestão da memória social
e, portanto, da condição humana torna impossível a racionalização dessa mesma
memória social, o que impede a maturidade moral, intelectual e identitária das
sociedades por elas mesmas. É o que acontece a qualquer indivíduo a quem os que
o tutelam inibem ou interditam a liberdade da sua relação íntima com as suas
próprias memórias. Na matéria, não existe descontinuidade entre o indivíduo e o
coletivo, isto é, o caminho para o desequilíbrio mental é substantivamente o
mesmo.
Salvo raríssimas exceções,
sabemos que a vida vivida torna impossível dissociar o favorável do
desfavorável, sendo que um e outro se explicam entre si no seu próprio
contexto. Não podemos exigir o mesmo amor ao próximo como a si mesmo a
um padre na sua paróquia de todos os dias e a um militar em situação de
confronto armado. É por isso que truncar um dos extremos da memória coloca em
causa a capacidade do sujeito (individual ou coletivo) de lidar de forma
saudável com a sua própria consciência.
E não é possível continuar a
tratar hoje sociedades inteiras, para mais envelhecidas, como se se tratasse de
um bando infantil, irresponsável, incapaz de pensar por si mesmo.
Dada a relevância do Estado
Novo (1926/1933-1974) para a identidade atual dos portugueses ou, no mesmo
ciclo histórico, da colonização portuguesa para os povos africanos saídos do
antigo império, truncar o lado positivo desse legado histórico para impor no
presente a fixação do olhar no lado negativo constitui não apenas a imposição
do desvio funcional depressivo da memória, como ainda um atropelo grosseiro à
mais elementar dignidade humana.
A propósito, Carlos Amaral
Dias, psicanalista português, escreveu: «[Wilfred] Bion [psicanalista
britânico] diz que um paciente chega a análise com seis factos [problemas],
cada um com uma versão, e está verdadeiramente em análise no momento em que
passa a ter seis versões para cada facto – expandiu o campo da significação» (Freud
para além de Freud, 2000, p.147). Ou seja, a sanidade mental da espécie é
tanto mais reforçada quanto mais as sociedades expandem os campos de
significação que atribuem ao seu passado, o que no exemplo aqui equacionado
remete para o Estado Novo incluindo a colonização portuguesa em África.
Assim sendo, por que carga
d’água um eventual Museu de Salazar tem de estar centrado em aspetos negativos
da sua época, inegáveis, mas que, como qualquer época, nunca se resumiu a tal
dimensão? É fácil antecipar que os iluminados que impõem essa representação do
passado imporão, no futuro, que um eventual Museu da III República Portuguesa
(iniciada em 1974) tenha de ser centrado em aspetos positivos inegáveis, porém
os negativos também o são. Guerras civis devastadoras deixadas na África
pós-colonial, três bancarrotas, mortes por incúria do estado e dos seus
governantes, degradação das instituições (justiça, ensino, família, segurança,
obras públicas, entre outras) – nada disso existiu na atual III República? É
por isso que vamos denegrir a época histórica da democracia?
Portugal é apenas uma
variante, no Ocidente, de um programa progressista-esquerdista de eugenia da
memória social, a versão cultural da lobotomia que deveria integrar, tal como a
lobotomia neurocirúrgica, o cardápio de crimes contra a integridade mental (e
física) do ser humano.
Não temos todos a obrigação
moral e cívica de recusar este destino ou, no mínimo, de o questionarmos?
Título e Texto: Gabriel Mithá
Ribeiro, Autor de Um século de escombros – Pensar o futuro com os valores moraisda Direita ,Observador,
19-10-2019
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