Patrícia Fernandes
O fanático ativista sente-se moralmente
superior porque reivindica um acesso privilegiado à verdade e essa atitude de
superioridade impede a valorização do dissenso e a obtenção de consensos
Em 1714 Bernard Mandeville
entrou para a história das ideias com a publicação de A Fábula das Abelhas:
vícios privados, benefícios públicos. Considerado um dos livros
fundamentais da economia política liberal, diz sobretudo muito sobre a
moralidade do homem moderno. Partindo da separação moderna entre esfera pública
e esfera privada, o argumento de Mandeville passa por considerar que os vícios
privados são essenciais para a prosperidade económica, gerando benefícios
públicos e coletivos – num argumento mais radical do que o do interesse próprio
de Adam Smith. Ao recuperar a dicotomia entre vícios e virtudes e valorizando
os primeiros, Mandeville permite-nos uma compreensão particular do espírito
moderno. O espírito dos antigos consistia na busca pela vida virtuosa, a partir
da comunidade, e o pensamento cristão manteve durante mais de mil anos a mesma
ideia numa lógica de pecados capitais a evitar. Mas com a modernidade os vícios
adquiriram aceitabilidade, primeiro privada e, mais tarde, pública.
Hoje assistimos ao culminar de
uma expansão de vícios privados para a esfera pública. É o caso da ira e a
tentativa de sustentar racionalmente discursos de ódio. Embora marque toda a
modernidade, esse discurso floresceu com especial ênfase no mundo académico
durante os anos 60 do século XX. É o nascimento da nova esquerda e a concepção
radical de que o sistema existente é a encarnação de todo o mal, estando para
lá da possibilidade de redenção. Todas as aflições públicas e privadas são
manifestações desse sistema que é preciso combater ativamente: deve ser
totalmente destruído para que seja possível construir um novo mundo. Nos
Estados Unidos esse discurso ganhou forma numa espécie de ira provavelmente
inédita: contra o próprio país e tudo aquilo que ele representa – capitalismo,
imperialismo, guerra, desigualdades, injustiça. Um sentimento que se foi
alargando a outras academias e que atinge o seu auge com o 11 de setembro. A
professora canadiana Janice Fiamengo refere essa data como o seu momento de ruptura
com a cultura que dominava a academia e que determinara o seu feminismo radical
anterior. Quando viu os colegas manifestarem satisfação com o ataque às torres
gémeas percebeu que havia algo de profundamente errado com aquelas pessoas e
aquela cultura.
Os últimos vinte anos
ampliaram o discurso de ódio. Hoje deve odiar-se tudo e publicamente. O
capitalismo, o imperialismo e todos os conflitos com os quais não concordamos.
A cultura do patriarcado e todos os homens, pois todos são potencialmente
violentos. Mas, em especial, o homem branco. Todos os que não usam as palavras
certas. Todos os filmes e livros que não coloquem a mulher no papel
principal e contenham um elenco preenchido de minorias, velhas e novas, mesmo
que à custa de erros históricos. Todo o humor, a não ser que não tenha piada.
Todos os que não aceitam cegamente a responsabilidade humana nas alterações
climáticas. Todos os que não levam a vida a sério. Todos os que comem carne.
Todos os que fazem piadas inadmissíveis, mesmo que seja por amizade. As
gerações mais velhas, mesmo que se tenham sempre esforçado para que os filhos
tivessem uma vida melhor. E tudo isto agravado pela maior de todas as invenções
da humanidade, as redes sociais, com o seu destilar de ódio permanente desde as
caixas de comentário aos tweets irados, assentes numa lógica de
vitimização.
Em algum momento, passamos a
aceitar como normal esta cultura de ódio. Pior do que isso, passamos a
valorizá-la. E é por isso que aplaudimos os olhos e as palavras iradas da jovem
Greta, os comentários daqueles que querem decidir sobre quem pode ocupar o
espaço político, os antis de toda a espécie, os cordões sanitários, manifestos
e cartas abertas, os que acusam os outros de mil e uma fobias, a absoluta falta
de empatia para quem ousa olhar para o mundo com outros olhos.
É fácil de perceber. Como Amos
Oz afirma no seu texto sobre o fanatismo (Contra o Fanatismo, Edições
Asa, 2007), é da natureza do fanático preocupar-se com o outro, que é sempre a
sua obsessão. O fanático acredita que pode salvar o outro, libertando-o pela
conversão, impondo-lhe a sua verdade que é a única verdade. E é aqui que reside
o perigo: o fanático ativista sente-se moralmente superior porque reivindica um
acesso privilegiado à verdade e essa atitude de superioridade impede a
valorização do dissenso e a obtenção de consensos. Perder o fanatismo é abrir
as portas à ambiguidade, é reconhecer um mundo que não é a preto e branco, é
aceitar a diferença e admitir a legitimidade daquele que pensa de forma
distinta. É saber ouvir. Mas uma cultura de ódio é surda e é, por essa razão, a
maior ameaça a uma sociedade democrática.
Título e Texto: Patrícia
Fernandes, Professora da Universidade da Beira Interior, Observador,
14-10-2019
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