Carlos
Miguel Fernandes
Os filhos chegam a ser usados como cavalos
de Tróia do progressismo que tomou conta do ensino: são enviados para casa com
a missão de vigiar e evangelizar os pais que não reciclam ou não comem quinoa.
Quem é Ulisses? Será o homem
calculista, sem escrúpulos, da Ilíada e de outras obras do Ciclo Épico, o
político hábil de Ajax e Filoctetes, ou o herói da Odisseia? A literatura
ocidental, cuja gênese é fundamentalmente homérica, assenta na ambiguidade da
condição humana — outra figura seminal, Jesus Cristo, tanto renuncia à paz e
ameaça com a espada, como oferece a outra face à injúria. É essa ambiguidade
que deve ser comunicada a todas as gerações, seja na forma dos poemas homéricos
e do drama trágico, seja através dos contos de fadas – e o que são alguns
episódios da Odisseia, como o confronto entre Ulisses e Polifemo, senão a
origem das histórias de encantamento? É bom que os homens descubram, ou intuam,
desde cedo, que estamos cercados por monstros e que dentro de cada um de nós
habita o mais selvagem. Lamentavelmente, as doutrinas liberticidas e a
mediocridade triunfaram sobre a cultura e o bom senso.
Primeiro, desapareceram os
clássicos. Da Ilíada a Dom Quixote, passando por Sófocles, Virgílio e Dante, a
razia remeteu as obras fundadoras para os covis acadêmicos e a insignificância
pública. Sobra um certo reconhecimento popular da sua importância histórica,
mas a opinião geral é a de que são obras datadas, sem lugar no mundo moderno,
algumas até incompatíveis com a peculiar ideia de humanismo que vingou na
sociedade.
Recentemente, na sua coluna
semanal na imprensa espanhola, o escritor Arturo Pérez-Reverte contou uma
história que ocorreu na Argentina, mas que ilustra bem o estado da civilização
ocidental. Trata-se de um episódio na vida de uma menina de quatro anos,
educada pelos pais, apaixonados pela Grécia Antiga, na literatura e cultura
gregas, na ira de Aquiles, na Odisseia, nas aventuras dos Argonautas, de
Hércules, de Teseu, e na restante mitologia, tudo convenientemente adaptado à
sua idade. Um dia, na escola, a educadora apercebeu-se de que a menina sabia
contar de um a sete em grego, que conhecia várias palavras no idioma de Homero,
e que o seu herói favorito era Aquiles. Estava aberta a caça aos hereges.
Os pais foram imediatamente
chamados à direção da escola e repreendidos por deixarem a filha de quatro anos
ver Troia, o filme de Wolfgang Petersen com Brad Pitt. A dedução, desde logo, é
reveladora do espírito dos tempos: não passou pela cabeça da diretora que a
criança pudesse ter contacto com a Grécia Antiga por vias mais tradicionais.
Porém, esclarecida a questão, o ralhete prosseguiu. De acordo com a senhora, as
crianças «não devem consumir mitologia grega porque conta histórias violentas»,
«os mitos não têm utilidade prática», «o grego clássico é uma língua morta», e
aprender estas inutilidades, avisou a diretora, pode converter a menina numa
marginal, excluída do grupo pelos colegas «normais». Segundo consta, os pais
não se deixaram intimidar e abandonaram a sala com um aviso: se a cena se
repetir, retiram a filha da escola e fazem queixa às autoridades competentes. A
coragem do casal é admirável numa época de gente pequena que se submete a
qualquer poder institucional, mas o que esta história atesta é o valor da
cultura clássica no ensino e na sociedade dos tempos que correm: quase nulo.
Arrumados os clássicos
incômodos, os alvos seguintes foram os contos de fadas e o folclore literário:
qualquer dia, quem contar a Branca de Neve às criancinhas arrisca uma denúncia
pelos crimes de apologia do assédio sexual ou ofensa aos anões (e nestes tempos
de fascismo idiomático, usar a palavra «anão» já é um risco). Conforme as teses
progressistas que se propagam com celeridade nos colégios e universidades
ocidentais, a Pequena Sereia, coitada, foi privada do seu «género» quando lhe
tiraram a cauda de peixe e a substituíram por duas pernas, o Monstro devia
estar preso por maltratar a Bela, e o Príncipe denunciado por importunar
sexualmente a Branca de Neve. O Lobo Mau, presume-se, está isento de julgamento
por mediação das associações animalistas.
O resultado está à vista:
vivemos hoje sob o ruído infernal da chamada «geração floco de neve», que se
caracteriza pela ofensa fácil, intolerância às opiniões divergentes e egolatria
patológica. A multiplicação dos filhos únicos e a obstinada tendência da
geração anterior – já por si instruída no maniqueísmo e na intolerância — para
insuflar o ego da prole e transmitir-lhe um sentimento de singularidade, só
contribuiu para agravar o problema, cuja origem, não obstante, está na educação
formal e metodológica, isto é, na escola. Os filhos, hoje, chegam a ser usados
como cavalos de Troia do progressismo que tomou conta do ensino oficial: bem
providos de raiva e prédicas moralistas, são enviados para casa com a missão de
vigiar e evangelizar os pais que não reciclam, que não comem quinoa, que não
dizem «presidenta», ou que, em geral, desconfiam das virtudes do novo marxismo
ecocultural.
O mal está feito, tem raízes
profundas, e não se resolve com reformas. É preciso abater e reerguer todo o
sistema educativo (de preferência de forma descentralizada e espontânea), até
porque o terceiro passo no processo de negação da cultura ocidental já está em
curso e passa pela reformulação da História de forma a encaixá-la nos padrões
societais hodiernos. Veja-se a disciplina proposta recentemente pelo Ministério
da Educação português, chamada História, Culturas e Democracia, que não é mais
do que um veículo para os ideais progressistas e socialistas, e uma
demonstração categórica de que a imbecilidade e o descaramento das criaturas
que ascenderam aos poderes públicos não têm limites.
Cabe aos pais responsáveis e
isentos da contaminação ideológica impor a sua autoridade (de pais e de
contribuintes) e deter o desastre em curso. Compete-lhes fazer o que fizeram os
pais da menina argentina que gosta de Aquiles: lutar para que os filhos possam
ser ensinados com os meios, os temas e as obras que foram sufragados pelo
tempo, e cuja validade não pode ser posta em causa por agendas políticas, muito
menos pelo delírio de feministas, ecofascistas, pacifistas primários e outras
seitas, que fervem quando veem um crucifixo numa escola pública ou quando leem
um masculino genérico no Twitter, mas que não se reprimem de encher a cabeça
dos filhos dos outros com as suas próprias extravagâncias, nem de, se tiverem
oportunidade, verter o procedimento em letra de lei. O labor dos fanáticos é
neurótico, hostil e profundamente nocivo. Travá-lo é um imperativo moral.
Título e Texto: Carlos
Miguel Fernandes, Observador,
3-1-2020
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