segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Dois zeros à esquerda

Alberto Gonçalves

Com a sobrancelha vibrante de angústia, o António acusa o António de deslealdade e traição. O António, com o lábio inferior trémulo de mágoa, reage e lamenta que o António recorra a ataques pessoais. O António sente-se. O António choraminga. O António faz queixinhas. O António corre para a mãe. Antes do debate na TVI, José Alberto Carvalho anunciou que iríamos testemunhar uma coisa nunca vista. Estava certíssimo.


Por mim, nunca vi demonstração tão cabal de vazio quanto o primeiro confronto directo entre os Antónios do PS. E esperava não voltar a ver, até que no dia seguinte o confronto se mudou para a SIC e os Antónios mudaram o registo. Depois da pieguice, passaram alegadamente a discutir ideias. Dado que não possuem uma única, além da peculiar noção de que a crise é facultativa e o crescimento decretável, o vazio foi ainda mais evidente.

Não significa isto que o António e o António sejam os maiores embaraços da história da democracia, embora essa hipótese não deva ser desprezada. Significa apenas que não há memória de os embaraços se exporem assim ao olhar do público. Por regra, quando uma organização de poder quer colocar uma nulidade na liderança, convoca um congresso e procede em relativo recato. Por razões que me escapam, o PS decidiu autopsiar as respectivas nulidades em horário nobre. E o resultado é este.

Misteriosamente, a opinião publicada consegue tomar partido na contenda, e quase sempre do lado do António, nascido e criado nas "jotas", contra o António, nascido e criado nas "jotas". A mera capacidade de se distinguir entre ambos os Antónios já é notável (no máximo, distinguem-se pelos que os rodeiam: um António é visto na companhia de relíquias socialistas e de vultos do que aqui passa por "cultura", e o outro António não). Mas verdadeiramente espantosa é a tendência de comentadores, colunistas, cartomantes e "politólogos" para se entusiasmarem com os desabafos dos Antónios, fundamentados em coisa nenhuma excepto na convicção de que um deles acabará a mandar no País.

A acontecer tamanho flagelo, de resto plausível, importa é perceber se o País sobreviverá a qualquer dos Antónios. Sabe Deus e sabem os contribuintes alemães que Portugal tem resistido a muito. A desesperada situação em curso sugere que não resistirá a tanto. Será azar, ou será talvez o justo castigo para quem leva a sério pelo menos um de dois zeros à esquerda. Os Antónios nem a brincar.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 15-09-2014

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