sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Entre a Varig e o Google, estamos navegando no escuro

Rafael Souto

Tenho saudades da Varig, a charmosa empresa brasileira de aviação fundada em 1927 e que sucumbiu no início deste século.

Não sei se era o célebre voo 100, que com maestria ligava o Galeão, no Rio de Janeiro, ao aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Talvez o serviço impecável que tornava o voo uma celebração. Quem sabe saudosismo típico de um gaúcho.

Sinto falta da malha aérea da Varig com mais de trinta destinos internacionais e que era a maior empresa área da América Latina. Hoje vemos nossas companhias com pouca expressão fora do Brasil e com serviços medíocres.

Além de tudo isso, o que mais chamava minha atenção era a dedicação dos funcionários da Varig. O amor à causa da empresa. A dedicação por tornar um sonho possível. O vínculo genuíno entre as pessoas. Meu pai trabalhou nessa empresa por 35 anos e eu percebia o que significava esse vínculo profundo com um negócio.

Aquela Varig não é mais possível no mundo contemporâneo. Inchada de pessoas, com estruturas demais e muitos privilégios, gerava pouco resultado e não teve musculatura de gestão para enfrentar a competição após a abertura da economia brasileira. Pouco eficiente para voar em um mercado de alta complexidade. A má administração e alguns interesses políticos que não convém aprofundar colocaram fim a ela.

Por outro lado, percebo que o mundo do trabalho virou um cassino das carreiras. Os ciclos de trabalho estão cada vez mais curtos. As estatísticas mostram que o período de permanência dos executivos nas empresas diminui ano após ano. O tempo médio numa empresa é de quatro anos.

Os profissionais falam em propósito, valores e em uma causa que seja importante para o mundo. No fundo, não têm paciência para construir. Trocam com facilidade os projetos. Argumentam que as empresas precisam pensar no longo prazo, mas não fazem o mesmo ao olhar sua própria contribuição.

Um dos conceitos que venho defendendo há alguns anos é a "trabalhabilidade". Esse neologismo pode ser definido como a capacidade de gerar trabalho e renda. Pensar além do emprego. Ter autogestão da carreira e não depender das decisões da empresa na condução da vida profissional.

Os efeitos colaterais da era da trabalhabilidade são o carreirismo excessivo e os ciclos curtos demais. A ausência de um legado consistente tem sido a marca dos currículos. Estamos produzindo uma geração especializada em trocar de emprego e fazer networking.

Tenho saudades do compromisso das pessoas, que estava acima de receber propostas no mercado. A construção do negócio estava em equilíbrio com o projeto individual. Hoje, percebo poucos executivos envolvidos, de fato, com o projeto da empresa. O grupo de pessoas que faz das corporações um trampolim para o posicionamento de mercado aumenta de maneira acentuada.

A geração Google discursa sobre o coletivo e o propósito. Procura uma causa nobre para colocar sua alma inovadora. Busca empresas que contribuem para o mundo. Puro marketing. O individualismo aumenta ano a ano. Esse fenômeno permeia todas as gerações. Não está mais restrito aos jovens. Percebo um universo individualista disfarçado com expressões modernas e de forte apelo emocional.

As empresas também se tornaram seres mais frios, pouco dispostas a pensar no longo prazo. Nas bonitas placas que descrevem a visão e a missão, falam sobre inovação, mas não permitem erros. Demitem com facilidade e pouco depois reclamam do apagão de talentos.

Por isso, tenho saudades da Varig. Da Varig e de todos os executivos do século 20 que construíram empresas com entregas robustas e que faziam do seu compromisso com o projeto algo sério. Muito antes da moda sobre resiliência, já tinham esse espírito de superação e permanência.

Como quase tudo no Brasil, ainda estamos amadurecendo.

Entre os longos ciclos de trabalho da geração Varig - com delegação total da carreira para a empresa - e o oposto, a visão excessivamente focada no curto prazo com trocas rápidas de emprego, teremos que encontrar o equilíbrio.

Estamos em uma zona de transição. Entre a Varig e o Google, precisaremos encontrar um espaço mais consistente de construção de carreiras e de compromisso com resultados.

E se o moderno é ficar trocando de empresas, vou procurar a Varig. 
Título e Texto: Rafael Souto é sócio-fundador e CEO da Produtive Carreira e Conexões com o Mercado, Valor Econômico, 13-11-2014

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