segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Da presunção de inocência à presunção de culpa

José António Saraiva

Nestes tempos de completa loucura têm-se dito imensos disparates e passado para a opinião pública muitas ideias erradas. Destaco oito questões, que merecem um comentário.

DETENÇÃO
Afirmou-se que Sócrates foi detido “com grande aparato mediático”.

Não é verdade.

Não existe nenhuma imagem da detenção de Sócrates, nem sequer do seu trajecto através do aeroporto acompanhado por agentes, depois de detido.

A única coisa que existe é o vídeo de um carro avançando na noite - aparentemente filmado com um telemóvel -, que não se sabe quem leva lá dentro.

Se fosse nos EUA, Sócrates teria sido detido dentro do avião e algemado.

Porém, os agentes esperaram por ele à saída da manga e conduziram-no por um percurso discreto, em que não houve contacto com jornalistas.

A detenção não poderia ser mais recatada do que foi.

POLÍTICOS SÃO IGUAIS?
Alguns comentadores disseram que uma das consequências desta prisão seria consolidar a ideia de que “os políticos são todos iguais”.

Todos iguais, como?

Alguma vez na História de Portugal (e não apenas na democracia) um ex-primeiro-ministro foi preso?

Alguma vez houve um caso sequer parecido com este?

Esta prisão pode ter o efeito exactamente contrário: começar a separar o trigo do joio, a boa moeda da má moeda, para não serem todos metidos no mesmo saco.

Uma justiça independente e eficaz contribuirá para estabelecer diferenças entre os políticos - e não, como se pretendeu fazer crer, para os tornar 'todos iguais'.

CARTA DE SÓCRATES
Noticiou-se que, no 'comunicado' enviado à TSF e ao Público, Sócrates “desmentia as acusações de que era alvo”.

Ora, o texto não desmentia nada, nem podia desmentir, pois aí Sócrates teria de reproduzir as suspeitas que existem contra ele e depois rebatê-las.

Mas isso seria uma violação grosseira do segredo de Justiça.

O comunicado de Sócrates limitou-se a seguir a sua velha receita: sempre que é acusado, apresenta-se como vítima de uma cabala.

Quando saíam notícias que o comprometiam, Sócrates fazia-se de vítima, virava os acontecimentos a seu favor e partia para o contra-ataque.

Foi assim no caso do diploma, no Freeport, no Face Oculta, no Taguspark, etc. - e é assim agora.
Esta carta foi o remake de um filme velho, numa linguagem gasta: “infâmia”, “abuso”, “falsidade”, “prepotência”, “imputações absurdas”, “humilhação gratuita”, etc.

Mas, em certo sentido, a carta de Sócrates era uma carta desesperada.

O grito de alguém que sabe que dificilmente fugirá a ser condenado e se apresenta ao povo como um D. Quixote que desafia sozinho a Justiça (“o processo é comigo e só comigo”).

MÁRIO SOARES
Disse-se que Mário Soares foi a Évora prestar “solidariedade ao amigo José Sócrates”.

Ora, não foi bem isso.

Sem se aperceber, Soares viajou no tempo até à época da ditadura, em que, na qualidade de advogado, defendia presos políticos e ia visitá-los à prisão.

Na cadeia de Évora, Soares não tinha Sócrates na sua frente: tinha um oposicionista do passado, preso pela PIDE por razões políticas.

Foi por isso que Soares disse, por exemplo, que Sócrates estava preso “sem ter sido julgado” (frase que só faz sentido no contexto de um regime ditatorial).

BAGÃO
Bagão Félix achou que o caso dos Vistos Gold é “mais importante do que as suspeitas de corrupção de Sócrates”.

Francamente, dr. Bagão!

Então a detenção de funcionários públicos por facilidades na obtenção de vistos de residência, por mais altos que sejam os seus cargos, é mais importante do que a prisão de um ex-primeiro-ministro por suspeitas de corrupção, em proveito próprio, no exercício de funções?

O alegado suborno de um chefe de Governo para adjudicar obras de construção civil em muitos casos desnecessárias - obras essas que também contribuíram para levar o país à bancarrota - é menos importante do que uns vistos, por mais dourados que sejam?

Na sua ânsia de atacar o Governo, Bagão perde a noção da realidade.

VISTOS GOLD
Foi chocante o modo diferenciado como muitas pessoas reagiram perante dois casos separados apenas por oito dias.

No caso dos Vistos Gold, elogiou-se o trabalho da investigação, ninguém criticou as fugas de informação nem invocou o segredo de Justiça, deram-se logo os suspeitos como culpados, falou-se de corrupção ao mais alto nível do Estado, considerou-se “inevitável” a demissão de Miguel Macedo e todos concordaram que o escândalo afectava o Executivo de Passos Coelho, ao ponto de António Costa considerar que a partir daí o Governo ficava “ligado à máquina”.

No caso Sócrates, criticou-se asperamente a magistratura, invocou-se o segredo de Justiça e atacaram-se os jornais que o desrespeitaram, considerou-se a detenção “desnecessária e humilhante”, repetiu-se até à exaustão que os suspeitos são “presumivelmente inocentes”, não se exigiu a demissão de ninguém, garantiu-se que o escândalo não afecta muito o PS e que António Costa deve prosseguir o seu caminho como se nada fosse.

Há pessoas que não têm uma réstia de pudor.

CORRUPÇÃO
A defesa de Sócrates afirma que no inquérito “não existem quaisquer indícios de corrupção”.

Será que anda a dormir?

Durante o consulado de Sócrates, o Grupo Lena passou de pequena empresa regional a grande potentado da construção civil, com fabulosos contratos no estrangeiro (designadamente na Venezuela). Até aqui, não se pode dizer nada.

O Grupo Lena foi, nesse mesmo período, contratado pelo Estado sem concurso público em obras de centenas de milhões de euros. Mas isto também não prova nada.

Carlos Santos Silva, o amigo de Sócrates, foi - igualmente no período de que estamos a falar - administrador do Grupo Lena e, a seguir, de uma empresa criada por este (a Lena Management & Investments SA, depois chamada XMI). Até aqui, ainda não se pode garantir nada.

Carlos Santos Silva passou para a conta de Sócrates (ou deu-lhe em dinheiro vivo) muitas centenas de milhares de euros ou mesmo milhões, comprou-lhe casas por um preço muito superior ao seu valor, e cedeu-lhe um luxuoso apartamento em Paris para viver (ou o apartamento pertencia mesmo a Sócrates e estava no nome do amigo?).

Ora, aqui já a porca torce o rabo.

Santos Silva deu tanto dinheiro a Sócrates porquê?

Por ser amigo dele e querer ajudá-lo num momento difícil da sua vida, quando vivia exilado em Paris sem meios de subsistência, com o risco de passar fome e ter de dormir ao relento, como os clochards, em cima das grelhas do Metro?

Não brinquemos!

A partir daqui, não pode dizer-se que não existem indícios…

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA?
Toda a gente, sem excepção, diz que Sócrates goza da “presunção de inocência”.

E diz bem.

A presunção de inocência é uma figura jurídica (importantíssima) que existe para que um indivíduo não perca os seus direitos antes de ser condenado.

Mas, em linguagem corrente, a situação de Sócrates já não é exactamente essa.

E isto porque o juiz, depois de ver os resultados da investigação, considerou provável que Sócrates tenha praticado mesmo os crimes de que é suspeito, mantendo-o em prisão preventiva.

Não quer dizer, evidentemente, que Sócrates venha a ser condenado.

Pode vir a ser inocentado.

Mas, neste momento, a presunção que sobre ele existe já não é de inocência mas de culpa. 
Título e Texto: José António Saraiva, SOL, 8-12-2014

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