quarta-feira, 26 de setembro de 2018

[Pensando alto] Uma sinfônica sem maestro e o sorriso enigmático da Mimi

Pedro Frederico Caldas

São cinco amigos, residem na mesma “comunidade” de uma cidade dormitório e trabalham em outra cidade, uma quase metrópole, a trinta quilômetros de distância: João, Euzébio, Waldisnei, Acácio e Valdomiro. De segunda a sábado, saem juntos. João os leva para a outra cidade. É motorista do ônibus que faz a linha. Euzébio, que salta no meio do caminho, passa o dia trabalhando numa fazendinha produtora de leite; Waldisnei, na construção de um edifício, erguendo paredes ou batendo lajes; Acácio, numa padaria da esquina, vendendo pão, providenciando cafezinho e sanduíche na chapa; Valdomiro, na sapataria de conserto rápido, fixando meia-sola e salto. Ao fim da jornada, voltam todos juntos, no mesmo ônibus pilotado por João. Antes de casa, passam na venda de uma esquina da “comunidade”, onde tomam uma cachacinha, que ninguém é de ferro, e compram leite e pão para o café da manhã dos filhos.

Agora, vem a minha indagação: Esses homens, com o seu trabalho, provocam as crises econômicas? Antes de responder, vamos adiante para dar uma olhada nesse bicho chamado “mercado”.

Todos iniciam o dia consumindo e produzindo. Ali está, em Itabuna (sempre a minha Macondo), o Santu Bule, na produção de pratos bons, saborosos, chiquérrimos e baratos. Não os trocaria pela mais refinada comida do mais refinado restaurante internacional. O seu cardápio é, para mim, uma leitura obrigatória. Um sonho de cardápio. Pudera, é tocado por um dream team. Ana, Fátima e outras maravilhosas pessoas que ainda não tive a honra de conhecer. A equipe trabalha, a clientela se farta; os clientes compram, a equipe vende. Vende as iguarias e, nelas embutidas, sem que os comensais percebam, serviços: compra da matéria prima, preparo da comida, lavagem dos pratos, limpeza do ambiente, serviço das mesas, controle do caixa. As proprietárias, pessoas empreendedoras, arriscaram capital, geram empregos, pagam impostos, visíveis ou invisíveis, dedicam seu tempo e criatividade ao negócio e, em qualquer medida ou percentil, contribuem para o aumento da produção e da riqueza da cidade, da região, do estado e do país. O mesmo se diga do labor de João, Euzébio, Waldisnei, Acácio e Valdomiro.

Maria saiu para comprar um sapato. Despendeu cento e cinquenta reais. O dono da sapataria deu-lhe o sapato e ficou com o dinheiro. Maria sacou o dinheiro de sua poupança bancária, o dono da sapataria depositou-o, com a féria do dia, em um fundo de investimento; o banco, envolvido na operação, prestou serviço a ambos. Mas a coisa não para por aí. O banco, depositário dos recursos dos clientes, empresta-os, por seu turno àqueles que, não dispondo do numerário de que necessitam, precisam ser financiados para consumir ou produzir.

Todos trabalham, todos produzem, todos consomem e todos pagam impostos. Até o mendigo, abatido pelo alcoolismo, pega o produto dos óbolos recebidos e, ao comprar uma garrafa de cachaça, entrega cerca de setenta por cento desse valor em impostos. Quanto aos impostos, fazer o quê? Como disse Benjamin Franklin, em carta dirigida a um amigo da Europa, “no mundo só existem duas certezas: a morte e os impostos”.

Seja como for, a atuação de todos nos garante, sempre, que haverá a escola, o supermercado, o transporte, a energia, a televisão, o rádio, o show, o cinema, o computador, a internet, o pão, o arroz, a engraxada, o transporte, a segurança, o banco, o leite... e, também, porque muito importante, o Santu Bule.

Foto: Reinaldo Mandacaru
Quem coordena tudo isso? Ninguém! E é bom que assim seja. Sempre novas coisas e criações virão. Há poucas décadas, não havia internet, Botox, WhatsApp, quimioterapia, jato, fertilizantes, pesticidas, colchão de molas, secador de cabelo, Viagra, jogos eletrônicos, cinema em casa, antidepressivos, o Santu Bule etc. etc. Cada bem, produto ou serviço deve sua existência e manutenção à iniciativa das pessoas. O homem que colhe a uva nos altiplanos andinos ou nas levemente onduladas terras da Borgonha, ou que pescou a lagosta nas costas do Ceará (alô comadre Naélia!) mal desconfia que o seu labor se transformará na degustação da lagosta ao Thermidor  [foto], escoltada por um vinho chardonnay maravilhoso, no inigualável ambiente do restaurante do Yatch Clube da Bahia, uma ilha deslumbrante de civilização e bom gosto. Até a uva e a lagosta virarem o objeto de um raro prazer, muito trabalho foi despendido, empregos e empreendimentos foram mantidos e muito dinheiro foi gerado. A conta que você paga, mantém o clube, as famílias dos que lá trabalham, o táxi que vem trazer e levar etc.

Olhem para suas cidades, olhem para a comunidade em que vivem, tudo funciona. Quando uma coisa não vai bem, desaparece; quando atende ao consumidor, prospera. Essa gigantesca engrenagem, que a economia chama de mercado, funciona como uma grande orquestra sinfônica que prescinde de maestro.  Se tentarem colocar um maestro, aquele que a ciência política chama de engenheiro social, o desastre, cedo ou tarde, virá.

Toda vez que um gênio tira de seu caldeirão de feitiçaria uma poção milagrosa para organizar o mercado, as coisas já não funcionarão com harmonia e eficiência, as prateleiras ficarão vazias, as pessoas perdem o interesse, a livre iniciativa, o ímpeto e o empresário, a garra, tudo acompanhado pelo que há de pior como inflação, desemprego, depressão.

O governo que está sob processo de impedimento e seu antecessor tentaram orquestrar a economia e interferir no mercado. Deu no que deu. Os argentinos viveram experiência parecida. Estão acabrunhados.  Vejam o que aconteceu e ainda acontece onde a engenharia social prosperou; vejam, como exemplo, o que se passou na Cortina de Ferro e o que se passa na Venezuela, em Cuba ou na Coreia do Norte. É triste.

Minha mensagem final é que deixem essa sinfônica sem maestro, ela funciona melhor assim.

E, agora, o sorriso da Mimi. Ela é o xodó do dedicado Euzébio, que cuida de todo o rebanho do sítio. Mimi é uma vaquinha holandesa lindinha e delicada. É bem alimentada, banhada e tratada. Já ganhou até prêmio em exposição. Generosamente e em contrapartida libera, a cada dia, pelas hábeis mãos de Euzébio, trinta litros de leite. Foi um bom investimento. Quando de boca fechada, parece, como a Mona Lisa, sorrir enigmaticamente. Ela olha para o dono, para o Euzébio, a quem adora, balança o rabo e pensa, como uma vaca inteligente que é: “como esses humanos são preocupados...”.
Título e Texto: Pedro Frederico Caldas, junho de 2016

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