Fernando Gabeira
É muito difícil fazer a
revolução, é muito difícil vencer, mas as dificuldades mesmo começam quando se
chega ao governo – essa frase é de um personagem do filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Sempre me interessei pelo
tema na literatura que descreve as transformações na cabeça das pessoas que
alcançam o poder. O personagem de Pontecorvo referia-se a uma guerra de
libertação nacional contra o colonialismo francês, algo muito mais dramático do
que a vitória da esquerda brasileira em 2002.
Minha experiência no Brasil me
leva a ressaltar um ponto decisivo na corrosão dos objetivos estratégicos –
quando existem – dos vencedores de uma luta prolongada: o desejo patético de
continuar no poder, desde o primeiro dia em que nele se instalam. A contradição
entre o discurso modernizador e as atitudes do governo fica muito mais clara no
período eleitoral, embora exista todo o tempo.
Dilma Rousseff convidou o
empresário Jorge Gerdau para colaborar na racionalização administrativa do
governo. Gerdau foi decisivo na modernização do governo do Estado do Rio de
Janeiro. Temos uma dívida de gratidão com ele, que investiu dinheiro do próprio
bolso no projeto. O único efeito colateral dessa operação bem-sucedida foi o
aumento do prestígio do governador Sérgio Cabral.
Nada de muito grave que não pudesse ser anulado com uma noitada em Paris, a bajulação do dono da Delta, guardanapos amarrados na cabeça e as mulheres exibindo os sapatos Christian Louboutin como se dançassem um passo de cancan.
Nada de muito grave que não pudesse ser anulado com uma noitada em Paris, a bajulação do dono da Delta, guardanapos amarrados na cabeça e as mulheres exibindo os sapatos Christian Louboutin como se dançassem um passo de cancan.
Apesar de todo o trabalho de
Gerdau, Dilma criou mais ministérios. Oficialmente temos 39. Com o marqueteiro
João Santana funcionando como ministro especial, podemos chamá-los de a
presidente e seus 40 ministros. A racionalidade foi para o espaço porque existe
apenas o patético desejo de continuar no poder.
Como se não bastasse, Dilma
resolveu prolongar a redução do IPI dos carros até o fim do ano. Qualquer
pessoa sensata que ande pelas ruas das metrópoles brasileiras sabe que estamos
chegando ao limite e a falta de mobilidade urbana é um grande desafio à
produtividade nacional. Isso para não mencionar os portos, como o de Santos,
com filas quilométricas de caminhões. Não conseguimos exportar nossa produção
com fluidez, a mercadoria adormece no asfalto. E quando importada de avião não consegue
ser liberada pela burocracia.
É surpreendente como uma
esquerda que se inspirou no marxismo, mesmo sem o ter lido bem, com raríssimas
exceções adota o caminho irracional com tanta naturalidade. Falando com um
americano do setor de petróleo, ele se mostrou perplexo com a decisão da
Petrobrás de comprar uma refinaria em Pasadena, nos EUA. O equipamento é
superado, custou alguns milhões de dólares mais do que valia e nos deixou com o
mico nas mãos. Não posso afirmar que essa irracionalidade esteja ligada às
eleições, assim como a tentativa de entregar ilhas do patrimônio nacional ao
ex-senador Gilberto Miranda. Mas se alguém ganhou dinheiro com o negócio
desastroso, os dólares têm toda a possibilidade de aparecer nas campanhas.
Muitos gostam de enriquecer,
comprar imóveis em Miami, alugar aviões, etc... Mas o dinheiro da campanha é
sempre sagrado: the show must go on. Isso num contexto geral mais obscuro, em
que eleitoralmente é possível saber quem ajuda o governo, mas, pelo fechamento
do BNDES, é impossível saber quem o governo ajuda.
O trânsito para a total
irracionalidade é mais nítido na esquerda venezuelana, que usa o mesmo
marqueteiro do PT. Num dos anúncios criados por Santana, Hugo Chávez aparece no
céu encontrando-se com Che Guevara, Simón Bolívar. Nicolás Maduro, o candidato
chavista, vai mais longe: afirma que o comandante Chávez reaparece em forma de
passarinho quando se reza por ele. Breve teremos passarinhos trinando nos
campos verdes, a encarnação de Chávez protegendo nosso sono, aconselhando-nos
nos dilemas cotidianos e, claro, batendo pesado na oposição.
Como foi possível sair da
leitura de Marx para um realismo fantástico de segunda categoria? Como foi
possível do caldo das teses de Marx sobre Feuerbach, mostrando a origem social
do misticismo, ou do tempero de A Origem da Família, da Propriedade Privada e
do Estado, a crença de que exista um canto no céu onde se encontram os ícones
da esquerda latino-americana e que eles viram passarinho para nos indicarem o
caminho da libertação? Mesmo sem parecer muito inteligente, não creio que
Maduro leve a sério essas histórias da transfiguração de Chávez.
No caso de Lula, posso falar
com mais propriedade. Ao nomear Dilma a mãe do PAC, houve uma nítida inflexão
em suas ideias sobre o mundo. Lembro-me de que em 2002, na Caravana da
Cidadania, ao visitarmos São Borja, onde Getúlio Vargas está enterrado, Lula
hesitou em levar flores ao seu túmulo. "Não seria fortalecer um populismo
desmobilizante?", perguntou. Certamente Lula não acredita que a sociedade
democrática seja uma réplica da família, na qual os governantes fazem o papel
dos pais e os eleitores, de filhos obedientes.
A verdade é que a esquerda no
poder deixou para trás muitas convicções. Oscila entre o paternalismo e o
misticismo religioso. Suas fontes não são apenas as religiões de origem cristã.
Inconscientemente, já pratica o vodu, sobretudo a ouanga, um feitiço para
envenenar simbolicamente os adversários por intermédio de seus sacerdotes
eletrônicos. Não percebe que o destino final de seu sonho de poder é a criação
de uma nação de zumbis, manipulando gadgets, povoando supermercados,
mentalmente mortos por falta de oxigênio no cérebro.
Em vez de avançar por meio da
prática e da autocrítica, de aprender com os próprios erros e contribuir para o
alargamento do horizonte intelectual, a esquerda em alguns países
latino-americanos optou pelo atraso e pela superstição simplesmente porque tem
pavor de perder o governo, como se não houvesse vida fora dele. Assim, uma
jovem rebelde dos anos 60 se transformou na Mãe Dilma, apoiada pelo Pai Lula, e
seu 40º ministro produz filmes sobre a esquerda no céu para os herdeiros de um
passarinho chamado Chávez.
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