João César das Neves
Enfrentamos hoje a mais
poderosa máquina de produção de disparate que o mundo alguma vez suportou. A
internet, coadjuvada pela televisão, jornais e outros meios de comunicação,
despeja continuamente um caudal imenso de opiniões, informações e interpretações
que, temos de o dizer, são na sua esmagadora maioria enormes tolices.
O facto é evidente até por
tantos garantirem com veemência que, tirando a sua, as outras visões são
asneira, o que confirma o domínio do absurdo. Diz-se tudo e o seu contrário.
Chegou-se ao extremo de, na fúria opinativa, os comentadores já nem se darem ao
trabalho de manter uma aparência de lógica e coerência, entrando facilmente em
contradições.
A crise europeia, que
ultimamente domina a enxurrada, mostra-o claramente. Multidões de
autopromovidos especialistas asseguram com toda a certeza que a crise é do
euro. A moeda única é a origem do mal e a solução é a sua mudança radical,
senão mesmo o fim. Diz-se moribunda, apesar de ser das moedas mais estáveis e
sólidas do mundo.
Curiosamente o primeiro país
europeu atingido pela tempestade financeira foi a Islândia, exterior à moeda
única. Logo que se viu afectada, a ilha, que nem sequer era da União, reagiu
pedindo a adesão à moeda europeia. Será o euro assim tão mau? Felizmente para
os analistas a Grécia, segunda a sofrer a crise, participava na malfadada
divisa, confirmando as tais previsões. Só que os gregos, em vez de aproveitarem
para se livrarem da terrível prisão monetária, insistem teimosamente em
permanecer. É mesmo, no meio da desgraça, um dos poucos consensos nacionais.
Perante uma evidência destas, até a cegueira ideológica mais total devia
repensar a posição.
Passando das vítimas aos
algozes, as incongruências continuam. O elemento mais ensurdecedor do debate é,
sem dúvida, a culpa germânica. Alemanha, em geral, e senhora Merkel em
particular são acusadas de estarem dominadas por um súbito e inexplicável
sadismo anti-helénico e cegueira antieuropeia. Só que o libelo também cai em
subtis contradições.
Omite-se que a Alemanha foi o
primeiro país do euro a suportar a austeridade, com as medidas do chanceler
Schröder, no poder de 1998 a 2005. Nenhum dos críticos lembra aquilo que os
alemães não olvidam. Essa violenta reestruturação orçamental foi, aliás, o que
permitiu ao país suportar bem a crise posterior, que agora afecta os parceiros.
Como, graças ao sacrifício, a economia beneficiou muito com a moeda única, os
analistas deduzem que o projecto de união monetária não passou de um truque
teutónico para ganhar à custa dos outros ingénuos Estados membros. Mas, mesmo
admitindo que seja verdade, como podem agora denunciar a Alemanha de forçar a
Grécia a sair? Então afinal os alemães ganham prendendo os pobres dentro ou
expulsando-os?
Em todas as análises fica
sempre excluído o aspecto decisivo, as largas centenas de milhares de milhões
de euros que a Grécia recebeu dos parceiros, e quer continuar a receber. Quando
esporadicamente se fala nisso é surpreendentemente para voltar a acusar a
Alemanha de ajudar apenas para apoiar os seus próprios bancos, carregados de
dívida grega. Será, ao menos esta, uma acusação coerente?
Os bancos europeus, alemães e
não só emprestaram muito ao governo grego. Mas o argumento, se foi válido, há
muito falhou, com a anulação dessa dívida nas sucessivas falências gregas.
Mesmo admitindo que a ajuda foi só para beneficiar a banca europeia, os únicos
que se poderiam queixar seriam os contribuintes europeus, alemães e não só, ao
ver os seus impostos nos lucros bancários. Só que esses não protestam, pois,
sendo também depositantes, temem pelas poupanças se a banca sofresse com a
desgraça dos gregos. Os quais, em qualquer caso, não podem protestar, pois
beneficiaram de enorme e preciosa ajuda. E as condições férreas da austeridade
são muito menos graves do que aquilo que o país viveria se, como a Argentina na
viragem do milénio, não tivesse sido ajudado.
O câmbio mostra que o euro
está de boa saúde. A crise é grega, profunda, intensa e complexa. Isso
naturalmente afecta toda a Europa, que tem de lidar com o terrível drama. O
momento é delicado e decisivo. Para o compreender é preciso esforço, argúcia,
serenidade e, sobretudo, respeito por todos os participantes, envoltos em dolorosas
escolhas.
Nos media o caso é tratado numa girândola de rudes teorias da
conspiração, A Guerra dos Tronos em reality show, o que só agrava a situação.
Embebida em adrenalina e ficção, a enxurrada de disparate já nem finge
aparentar coerência.
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