Maria João Avillez
Se não fosse coisa tão irresponsável, tão
imbecil, seria cómico achar que qualquer Rio correria lesto e seguro para S.
Bento-do-Poder. Levando consigo à trela o PSD até à porta do céu, claro está.
1. A oposição é sempre amêndoa amarga, sobretudo para quem ganhou
as eleições. A travessia do deserto é longa, os militantes impacientam-se, os fiéis
deixam de o ser, os simpatizantes despem o casaco, o eleitorado descrê. É
preciso o dobro da fibra, da resistência, da invulnerabilidade. Não é para
qualquer um e até talvez por isso é um fenómeno muito interessante de observar
politicamente. Mas também não é preciso ser aluno de Chateaubriand para
descobrir que a oposição ou é desafiadora, ou não é. As meias tintas nunca
compensaram em política (nem em circunstância alguma de resto), já lá vou.
2. Vem isto a
propósito de se ouvir dizer em muitos meios e lados que Passos Coelho [foto] está em
banho de maria. “Não faz nada” (?) “não serve”, “já não serve”. Mesmo dando
(pacientemente) de barato que o PSD sempre foi autofágico, aplaudindo hoje quem
irá friamente assassinar amanhã — e a cavalgada de líderes enxotados apenas
mostra como a sustentabilidade ideológica da “casa” é o que convier a cada
“saison” – os rumores de desagrado são os do costume. Sempre prestimosamente
ampliados pela media, já os ouvimos mil vezes. Mal o partido se vê arredado do
poder ou ainda suficientemente distante dele, logo imputa exclusivamente ao
líder a culpa e o castigo, é tique antigo. Ciclicamente reeditado quando o PSD
caminha pela estrada da oposição, também nos lembramos.
Se não fosse coisa tão
irresponsável, tão imbecil, seria cómico (quase com um entre-acto de Feydeau
para quem ainda se lembra da leveza e da inconstância dos seus gentis
boulevards), achar que um qualquer Rio correria lesto e seguro para S.
Bento-do-poder. Levando consigo o PSD à trela, até porta do céu, claro está.
3. Não sei se
Passos Coelho tem paciência ou se tem ouvidos de mercador (uma das coisas
terá), mas o que sei que é que, felizmente (para mim, pelo menos), tem
constância e convicção. Um dia se verá se acertou na constância da oposição que
faz e na convicção que põe no acerto dessa escolha. Talvez sim, talvez não,
embora não dependa exclusivamente dele. Mas entretanto (e, outra vez,
felizmente) não lhe ocorre mudar de pele, trocar de personalidade, sentar-se no
circo, contemporizar com a festa e aplaudir a ficção, comover-se com a actual
felicidade dos portugueses, ir para a fila dos afectos. Ceder ao ar do tempo,
numa palavra, embora ignore se seria a que ele próprio empregaria.
Seja como for, calcule-se que
agora Passos se travestia de Saraiva (o da CIP, o que é caso obviamente bem
mais ferido de irresponsabilidade) e após estes 12 meses de austeridade
escondida com rabo de fora, perdões fiscais também mascarados de outras coisas,
medidas demagógicas (oh, IVA da restauração!), governação populista (quanto
está a custar a reversão de quase toda a governação anterior?), uma polca
indecorosa dançada sobre os nossos impostos, com desculpas ainda mais
indecorosas (o menu da governação é demasiado ácido para o ler até ao fim), e
lhe dava, a Passos Coelho, para, como o tal Saraiva, ser delicodoce para com o
Governo em vez de usar de firmeza em nome do país e não dos “ricos”,
contemporizar com (quase) tudo, e sorrir muito?
Passos destoa, e sabe que
destoa, O país talvez ainda não tenha percebido que o faz pelas boas razões,
mas Passos sempre pagou pela sua pessoa. Deve-se-lhe um rumo numa crise que não
provocou e a persistência no rumo, por entre as vagas da crise. Não é pouco.
Conheceu de perto a tragédia sob mais que uma forma, o que o recomenda, mesmo
que, de novo, poucos dos seus pares vislumbrem o alcance de sofrer sozinho. Ou
seja, mesmo que venha a perder depois de ter ganho, quem está a sério nas
coisas terá de lhe agradecer que justamente, destoe.
Além disto que é alguma coisa,
não me parece despiciendo insistir num facto que embora óbvio é sempre muito
convenientemente tapado ou arredado da cena política: Passos Coelho está
entalado entre um Presidente que lhe quer a pele, um Governo que ficcionou um
país, um porta-voz presidencial que obedientemente o insulta aos domingos num
écran televisivo, patrões, associações e corporações jubilosamente convertidas
à geringonça e até divertidas com ela, e, last but not least, tropas próprias
pouco confiáveis. A amêndoa é de fel, mas que importa? Passos Coelho, para
descanso e felicidade de alguns (ignoro quantos sejam), mantém-se muito
simplesmente igual a si mesmo.
4. Mas… serve como
único cartão de oposição manter-se igual a si mesmo? E chegará como critério de
ocupação do espaço oposicionista evocar, com alta frequência, os anos amargos?
Desenhando Passos Coelho, um futuro ainda mais amargo sem nos dizer como as
coisas poderiam ser diferentes – para o país e para os portugueses – caso lhe
tocasse a ele ocupar-se delas? Não julgo socialmente útil, nem politicamente
oportuno, cantar com uma nota só nem tocando apenas uma tecla. De todo, não.
Uma oposição além de substancialmente frontal tem der ser construtivamente
“mobilada” por um conjunto de ideias, actos, iniciativas e gente – onde é que
ela está? — que deem suporte, coerência e substância às linhas de orientação
escolhidas pela liderança. Se matéria não falta (e não falta mesmo) para correr
o país criticando a irrealidade do Executivo, falta a outra metade que — é
certo — ninguém quer ouvir, o ruído da festa não deixa. Seja como for, ao principal
líder da oposição pede-se mais, no mínimo que seja maior que o seu partido e
que lhe interesse ouvir o país para além das fronteiras do PSD. Sinto as
maiores dúvidas que alguém da “sociedade civil” se tenha, nos últimos meses,
sentado a uma mesa com a liderança social-democrata (e se se sentou, nós
devíamos sabê-lo). Já não tenho dúvida nenhuma que, para parte do mesmo PSD,
fazer oposição seja sobretudo conspirar contra Passos Coelho. A diferença — que
não é pequena, de resto – é que quando houver descontentamento, os descontentes
se lembrarão de Passos. E acessoriamente do PSD.
PS. Com o devido respeito
por António Guterres e pelo Menino Jesus, alguém deveria sugerir aos
fabricantes de presépios que o Menino Jesus do Natal deste ano tenha as feições
de Guterres. Não é ele o novo Messias?
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