Manuel Villaverde Cabral
O nacionalismo e o proteccionismo que
caracterizam todo o arco histórico do «populismo» alimentam-se hoje do receio
perante o cosmopolitismo, do qual a União Europeia constitui o grande fantasma.
O termo «populismo» tornou-se
o nome que se dá mecanicamente a todas as manifestações de natureza política
que saem do enquadramento partidário vigente até há pouco tempo. «Populismo» é
tudo o que é diferente e que a comunicação social não reconhece dos manuais
correntes de ciência política. Dito isto, não é muito inteligente «gritar ao
lobo», pois quando este aparecer, arriscamo-nos a não o reconhecer e a sermos
comidos por ele!
Na realidade, o «populismo» é
um sentimento político que provém de uma velha estirpe iniciada na Rússia da
segunda metade do século XIX, onde constituiu um vasto movimento cultural de
oposição radical à autocracia czarista – incluindo actos de terrorismo – feito
em nome do «povo» (narod; daí a designação de populistas: narodniki;
ver o clássico de Franco Venturi de 1952). Sob a sua versão final de
«socialismo revolucionário» (os famosos «SR de esquerda» de 1917), o «populismo
russo» ainda tentou aliar-se aos bolcheviques para abrir o caminho à entrega da
«terra a quem a trabalha» logo a seguir à revolução de Outubro, mas acabou por
ser rapidamente esmagado pela ditadura soviética, a qual colectivizaria toda a
agricultura nos anos 20!
No extremo geográfico oposto,
também em finais do século XIX existiu nos Estados Unidos um «partido
populista» que, liberalmente, acabou por originar os primeiros agrupamentos
trabalhistas até que o «New Deal» e a 2.ª guerra mundial absorveram a maior
parte das tensões esquerdistas. Bem mais importante foi um terceiro movimento
«populista» que emergiu na América Latina nos anos ’30 e ’40, nomeadamente no
Brasil com Getúlio Vargas e na Argentina com o general Perón. Na região, o
«populismo» tem-se mantido até hoje sob múltiplos avatares, como os «militares
progressistas», entregando-se ao mando de figuras como Chávez e Maduro. Cuba
provinha igualmente deste tronco até se tornar «comunista», sempre em nome das
massas populares…
Por definição, todas estas
manifestações «populistas» têm em mira afastar do poder as oligarquias
tradicionais e dirigir-se ao «povo». Porém, na falta de alternativas
democráticas à oligarquia, resvalam rapidamente para formas ditatoriais que não
deixam de atribuir benefícios a determinadas classes populares, mas trocam tais
benefícios pelo confisco do poder até a economia estoirar. Simultaneamente,
combinam, tal como os movimentos a que hoje chamamos «populistas», medidas de
direita e de esquerda, pretendendo manter-se equidistantes de ambas as
ideologias.
A actual vaga «populista»,
como foi designada a partir do momento em que a Frente Nacional começou a ter
êxito em França, possui uns vagos restos da fé dos narodniki nos
valores populares nacionais como forma de enfrentar as autocracias
oligárquicas, mas perdeu as referências democráticas dominantes desde o segundo
pós-guerra. O mesmo se pode dizer de um movimento como «Podemos» em Espanha,
vinculado agora à grande recessão de 2007 e a uma pretensa luta contra a
austeridade imposta por um vago «imperialismo», como se houvesse algures um
centro onde a dominação capitalista fosse armada contra os «povos» da União
Europeia… O nacionalismo e o proteccionismo que caracterizam todo o arco
histórico do «populismo» alimentam-se hoje do receio perante o cosmopolitismo,
do qual a UE constitui o grande fantasma, e a globalização
económico-financeira.
É este novelo infindo de
contradições entre os alegados sentimentos populares e o construtivismo
cosmopolita das chamadas elites que se tem vindo a desenrolar parente nós,
dividindo os países da nossa área geocultural em duas e, depois, em mais duas
«crenças» políticas que combinam de modo oportunista as clivagens soberanismo
vs cosmopolitismo e proteccionismo vs liberalismo. Os agrupamentos mais
radicais – «populistas» – que combinam o soberanismo e o proteccionismo
apresentam-se umas vezes como sendo de «esquerda» e outras de «direita», embora
aquilo que caracteriza o «verdadeiro populismo» seja negar uma e outra ideologia:
o melhor exemplo é porventura o «Podemos» espanhol, não à toa oriundo da
América Latina, onde o «populismo» é concebido como unificador e não divisivo,
em suma, autoritário e não pluralista!
Sem surpresa, foi nesta
armadilha que caíu o primeiro-ministro italiano demissionário, Matteo Renzi, ao
pretender impor um nacionalismo popular por ele encabeçado. Tive aliás oportunidade de
mostrar como Renzi, há já ano e meio, não fazia mais do que usar a ideologia
basista das «eleições primárias», como fazia então António Costa no PS, a fim
de transformar os partidos tradicionais em arregimentações ditas populares
atrás de líderes pretensamente carismáticos que iriam ultrapassar sem dor os
apertos da crise.
No caso de Renzi, tratou-se –
nada mais, nada menos – do que transformar-se no novo líder do último grupo
descendente do Partido Comunista Italiano, propondo-se fazer de toda a
estrutura política italiana um instrumento à medida do seu poder pessoal. A derrota
de Renzi mostrou o grave perigo de abrir caminho a mais um demagogo, desses que
nos salvaria se o acompanhássemos no seu iluminado caminho, ora a favor ora
contra a Europa. Não é impossível que Renzi tenha levado o eleitorado italiano
a tirar as consequências do risco que correu e continua a correr, do qual só a
UE o pode proteger.
Título e Texto: Manuel Villaverde Cabral, Observador,
9-12-2016
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