Alberto Gonçalves
Descendentes de gente maravilhosa, os
cidadãos decidiram sentir, sentir muito, sentir imenso, sentir sempre – desde
que, vale acrescentar, o sentimento verse matérias que não lhe dizem respeito.
Soube só vagamente que, há
dias, uma tenista qualquer reclamou com um árbitro qualquer durante um jogo
qualquer. Na América. Dito assim, ou dito assado, o facto é tão irrelevante
quanto o meu jantar de anteontem. Sucede que os tempos são propensos a pegar em
irrelevâncias, agitá-las imenso e servi-las a título de “assunto”. Assunto ou,
na linguagem e na ação contemporâneas, motivo de indignação. Hoje, quase tudo é
pretexto para as pessoas se indignarem e exibirem o resultado na internet, um
palco de furiosos que tornou anacrónicos o Speaker’s Corner no Hyde Park, a
terapia do grito e os desfiles da CGTP. Porque é que um “match-point” remoto
não deveria enfurecer multidões?
Primeiro, vieram os patriotas.
Pelos vistos, o árbitro em questão é português e, naturalmente, “um dos
melhores do mundo”. Entre parêntesis, começa a ser redundante acrescentar a
expressão “melhor do mundo” à palavra “português”. Num movimento estimulado
pelos comentadores da bola e pelo prof. Marcelo (outra redundância), é
praticamente obrigatório notar que, dos treinadores às rolhas, dos chocos
grelhados às solas de borracha, aquilo que Portugal produz constitui uma bênção
para a humanidade, no fundo pasmada ante a nossa grandeza. Fora de parêntesis, no
caso em questão, os patriotas nunca permitiriam que a afronta a um árbitro de
que nunca ouviram falar passasse sem resposta. Milhares de “posts” no Facebook
convidaram a tal tenista, e o público boçal que a aplaudiu no mau perder, a
respeitar a nossa nação superior, ali representada por um senhor empoleirado.
Depois, vieram as – ou os, não
quero ofender ninguém – feministas. Para estas, ou estes, as críticas
posteriores à birra da tenista apenas existiram porque a tenista é mulher e,
como tal, vítima de discriminação. Fui ver. A mencionada atleta, Serena
Williams de seu nome e 16ª no “ranking” da modalidade, detém um pé-de-meia de
meros 170 milhões de dólares, além de mansões humildes em Los Angeles e Palm
Beach. A fortuna do atual primeiro classificado da tabela masculina, Rafael
Nadal, anda pelos 160 milhões. Fica claro que a sra. Williams agoniza às mãos
do sexismo vigente. E fica claríssimo o ócio mental de quem aproveita cada
ocasião para protestar em nome dos demais sócios de uma agremiação imaginária,
cuja vasta maioria não lhe encomendou o serviço. Milhares de “tweets”
revoltados voltaram a demonstrar que os campeões das “identidades” carecem
urgentemente de uma.
Por fim, entrou em cena a
turba indistinta que, no meio de uma polémica postiça, costuma recolher as
pequenas polémicas postiças que sobram. No caso, o “racismo”. É que a sra.
Williams é “preta” ou, mil perdões, “afro-americana”, e isso abre a porta a
toda uma série de possibilidades no sector da indignação. Pior do que a
referência à “raça”, os antirracistas abominam a indiferença à “raça”: é
necessário chamar incessantemente a atenção para semelhante critério de modo a
que o critério deixe de chamar incessantemente a atenção, e o universo viva em
harmonia – ou em guerra racial, o que para os “antirracistas” é ainda melhor. A
concentração de melanina no corpo da sra. Williams diminui a sua sensibilidade
à luz solar e aumenta a sensibilidade dos “antirracistas” ao resto. O autor de
um “cartoon” que ridicularizava a ira da sra. Williams no “court” viu-se
acusado de ridicularizar a “etnia” da sra. Williams na vida. A pensar no
desgraçado, milhares de publicações no Instagram (liberdade poética, ignoro o
que o Instagram faz) acenderam uma fogueira “virtual”, lamentando unicamente a
“virtualidade” da dita. O desgraçado esteve a um passo de perder o emprego,
castigo mínimo por beliscar a susceptibilidade de estranhos.
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Cartoon: Mark Knight/Herald Sun |
Notas de rodapé:
1. O dr. Rio, portento
escolhido pela “direita” para consagrar o rumo socialista previsto na
Constituição, abençoou uma tentativa do Bloco de Esquerda em taxar
especialmente as “mais-valias rápidas” (?) no imobiliário, ideia tão grotesca
que é espantoso o PS não lhe ter pegado. Confirma-se que Pedro Passos Coelho
era o derradeiro obstáculo ao regime de partido único. Uma vasta maioria de
portugueses, à sua maneira também únicos, gosta assim.
2. Grandes nomes da cultura
internacional e caseira, de Brian Eno ao Padre “Na Reserva” Fanhais, de Mike
Leigh a António “Hífen” Pedro Vasconcelos, de Aki Kaurismäki a José Mário
“Inquietação” Branco, empenharam-se num projeto comum: impedir a realização do
Festival da Eurovisão em Israel. Parece que não conseguiram, mas nem tudo está
perdido. É ridículo juntar tantos talentos sem os aproveitar para outras causas
humanitárias similares: a reabilitação póstuma de Adolf Eichmann, a atribuição
do Nobel da Paz (ou da Literatura) ao Estado Islâmico, o boicote a Jerry
Seinfeld, eu sei lá.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
15-9-2018
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