Rafael Marques de Morais
Morreu João Alfredo Dala [foto]. O seu funeral será amanhã. Trata-se de um cidadão comum, com uma história de injustiça comum em Angola. É mais uma vítima de um regime que prega aos quatro ventos a defesa da soberania, mas continua insensível ao sofrimento do cidadão comum, causado pela barbárie das instâncias do seu poder. E, aqui, o poder é um todo, afunilado na sede do MPLA e agora nas mãos de João Lourenço.
João Dala sucumbiu aos
ferimentos e às consequências da tortura de 15 horas seguidas que lhe foi
pessoalmente administrada por altos responsáveis do Serviço de Investigação
Criminal (SIC), a 5 de dezembro de 2016. Desde então, como me contou quando o
entrevistei e sempre que nos encontrámos, só conseguia dormir sentado, com as
pernas esticadas, para aliviar as dores. Os médicos cubanos e angolanos que
tentaram em vão salvá-lo, na mesa de operações do Hospital Central de Malanje,
perguntaram à família se o malogrado tinha sofrido um acidente ou um ato de
tortura. A família relatou então aos médicos o sadismo dos homens do SIC (ver aqui).
Ana Dala, irmã do falecido,
explicou que o seu irmão teve de ser inicialmente internado no Hospital Josina
Machel, sob falsa identidade, “porque os homens do SIC perseguiam-no para
matá-lo”. Nesse hospital, foi “abandalhado”. A família optou por levá-lo a
Malanje, sua terra natal, onde contavam com a simpatia de alguns médicos, “em
vão”.
Vale a pena relembrar o
calvário de João Dala às mãos dos oficiais do SIC. Mancomunados com Daniel Cem,
líder derrotado nas eleições da Igreja Adventista do Sétimo Dia, os homens do
SIC inventaram que João Dala participou num rapto que nunca aconteceu.
João Dala, então líder da
Juventude Adventista no Rocha Pinto, foi condenado juntamente com outros
pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que apearam Daniel Cem da
liderança máxima, num julgamento inacreditável. Como ilustração do que
aconteceu, saiba-se que Daniel Cem levou 30 milhões de kwanzas à sala de
audiências, para o juiz António Francisco contar, e este levou o saco para a
sua viatura particular, sem qualquer pudor. Quando terminou a audiência, na
13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba
Kiaxi, o juiz foi-se embora com o dinheiro.
Até à sua morte, João Dala
esteve proibido de viajar para o exterior, embora desejasse buscar tratamento
adequado na Namíbia (ver aqui).
No rol dos condenados de forma
vergonhosa pelo juiz António Francisco, encontra-se o pastor Burns Sibanda, do
Zimbabué, que foi detido 15 dias depois de ter sido submetido a uma cirurgia a
um cancro na próstata, na Califórnia, Estados Unidos da América. O Tribunal
Supremo, que tem a responsabilidade de decidir sobre o recurso dos pastores,
tem-se manifestado insensível aos apelos do advogado de Burns Sibanda para que
lhe seja levantada a interdição de saída e possa, desse modo, fazer a consulta
de revisão. Burns Sibanda diz apenas: “Estou confuso com a justiça em Angola,
muito confuso.” (ver aqui)
Dá a impressão de que o
sistema judicial também anseia pela morte de Burns Sibanda. Morrer em Angola,
por falta de humanidade nas instituições do Estado, é tão banal que já ninguém
pensa nisso. Só é estranho pensar-se no direito à vida. No direito dos
cidadãos, nos direitos humanos.
Em abril passado, de resto, o
presidente João Lourenço teve um gesto extraordinário: promoveu a comissários
os principais torturadores, Fernando Manuel Bambi Receado, e Pedro Lufungula.
Lourenço Ngola Kina foi promovido a subcomissário. A iniciativa das promoções
foi do ministro do Interior, Ângelo de Barros Veiga Tavares, o supervisor do
SIC. Fernando Receado foi também promovido ao cargo de diretor provincial do
Serviço de Investigação Criminal de Luanda, enquanto Lourenço Ngola Kina foi
designado diretor provincial do SIC-Uíge.
Republicamos aqui trechos da
anterior investigação do Maka Angola.
O assalto
A operação de inventona do
rapto teve início a 4 de dezembro de 2016, por volta das 23h00, quando um grupo
de 18 elementos encapuzados invadiu a residência de João Dala, matando o seu
cão pastor alemão com um tiro na cabeça.
Nessa altura, os 18 homens –
comandados pelo especialista do Serviço de Investigação Criminal (SIC) Elifaz
Simão Sebastião Germano, colocado no Departamento Provincial de Operações, e
por Paulino Quizanga Andrade – retiraram os capuzes. Só então a família percebeu
que não se tratava de um assalto, mas de uma operação policial. Qual era a
diferença?
“Os polícias tiraram a fralda
do meu neto de um ano para o revistarem e verem se lá não tínhamos escondido
dinheiro, como ele tinha feito cocó, os polícias atiraram-me a fralda à cara.
Fiquei com as fezes na cara”, revelou a vítima.
Ato contínuo, os agentes
revistaram as mulheres, incluindo as crianças, obrigando-as a ficarem nuas. “A
minha esposa até hoje está traumatizada, porque a obrigaram a ficar nua diante de
todos os polícias. Puseram-na agachada para verem se não tinha escondido nada
nas cavidades. O agente Quizanga disse que a família não devia levar a mal,
porque estavam a usar um procedimento legal da polícia”, refere o esposo.
“Eu tinha três mulheres adultas
em casa. Até as crianças foram despidas, e obrigadas a ficar agachadas, nuas,
com as mãos na nuca. Para serem apalpadas nos sexos e depois voltaram a
amarrá-las”, reiterou.
João Alfredo Dala revelou
ainda que os agentes lhe ordenaram que entregasse todo o dinheiro que tinha em
casa.
“Eu tinha um cofre improvisado
por detrás do guarda-fato. Os homens retiraram 15 mil dólares, nove milhões de
kwanzas, seis mil euros e dez mil renminbi (dinheiro chinês). Ali mesmo, diante
de nós, os 18 dividiram o dinheiro entre si. Um deles ainda me perguntou qual
era o câmbio do dinheiro chinês e onde poderia trocar. O outro só queria
receber em dólares e em kwanzas”, denunciou Dala, cuja atividade profissional é
o comércio.
“Ameaçaram-me que, se eu
mencionasse que tinham dividido o dinheiro entre si, regressariam para fuzilar
a minha família. O Quizanga e um mulatinho faziam essas ameaças. O que um dizia
o outro repetia”, acrescentou.
A tortura
“Na esquadra [48.ª, na
Estalagem, município de Viana], encontrei o superintendente Fernando Receado,
chefe do Gabinete Central de Operações do SIC a nível nacional, e o Ngola Kina,
diretor-adjunto de operações em Luanda, bem como outros chefes”, disse.
“O agente Quizanga atingiu-me
com o cabo da pistola na cabeça. A seguir, o agente Elifaz deu-me uma catanada
que me abriu a cabeça, na presença do chefe do gabinete de Operações do SIC, o
superintendente Fernando Receado, por ter reclamado o dinheiro que eles
dividiram em casa”, contou.
![]() |
João Dala foi submetido a tortura com catana, alicate e outros métodos |
Carlos Cem, irmão do pastor,
deu início às hostilidades, tendo esmurrado João Alfredo Dala ao ponto de lhe
arrancar um dente, conforme depoimento deste. “O Carlos Cem disse-me que é
poderoso em Luanda e controla a polícia.” João Dala caiu no chão com o vigor
dos socos. Foi então a vez de o pastor Daniel Cem, diante dos chefes do SIC,
prosseguir com a pancadaria, pontapeando o detido na cara repetidas vezes, como
este denunciou.
“O pastor Cem ordenou ao
superintendente Fernando Receado que me amarrassem no formato de tortura do
avião Kadiembe. Mas o chefe de operações do SIC optou antes pela tortura do
pénis.”
Segundo o detido, “o Pinto
Leite retirou os atacadores dos seus ténis Converse, amarrou-os um ao outro,
para o fio ficar comprido. O chefe Fernando Receado foi quem pessoalmente
amarrou o fio no meu pénis e foi o primeiro a começar a puxar e a correr comigo
à volta da sala, enquanto o pastor Daniel Cem e o irmão diziam que eu falaria
rápido e todos se riam”.
Os chefes da investigação e os
acusadores revezaram-se então, solidariamente, a torturar o detido. “Depois do
chefe Receado, foi o Carlos Cem a pegar no atacador amarrado ao meu pénis e a
começar a correr comigo pela sala, a puxar. A seguir foi o Noé (SIC, Cacuaco)”.
Todavia, “o pastor reclamou
que não me estavam a puxar bem, e recebeu o atacador e começou a correr na sala
e a puxar-me com muita violência. Eu estava a sentir a bexiga como se estivesse
a cortar. O tenente-coronel Terça Massaqui pegou na corda e começou a puxar com
extrema violência e a perguntar-me se doía. Ele já não correu”.
A seguir foi o
superintendente-chefe Pedro Lufungula a puxar o pénis do detido pela corda.
“Então, pediram ao Pinto Leite para ir buscar um bloco de cimento que estava na
porta. Amarraram o atador ao bloco de cimento e obrigaram-me a correr na sala,
com o bloco amarrado ao pénis. Eu já não aguentava. Não conseguia sequer dar um
passo. Então batiam com força nas orelhas, por detrás, e eu caía e rebolava com
o bloco”, afirmou.
“Nessa altura, eu, que tenho
1,75 cm, tinha o meu pénis já esticado até ao joelho”, acrescentou,
mostrando-nos as fotos chocantes.
“Foi então que vi o próprio
Ngola Kina a chorar e a pedir ao superintendente Fernando Receado, o chefe do
Gabinete de Operações do SIC, que me desamarrassem os atacadores e parassem com
a tortura do pénis, porque eu poderia morrer”, explicou.
Já eram sete horas. O pastor
saiu com os seus acompanhantes, disse que iria pregar nesse dia e deixou ordens
para que a tortura continuasse até haver uma confissão em vídeo, envolvendo os
outros pastores. “Referiu que eu bem poderia morrer, ele assumiria”, disse.
A tortura da catana
“Então, o Ngola Kina propôs um
outro método de tortura. Puseram-me um pedaço de cobertor preto, que usavam
como pano de chão, nas costas. Despejaram-me água fria e começaram a
torturar-me com o lado da catana”, denunciou.
João Alfredo Dala referiu que
todos os presentes se revezaram a espancá-lo com a catana, exceto o proponente
Ngola Kina. “O superintendente Fernando Receado foi o que mais me espancou, o
Noé a seguir”, afirmou.
Como o torturado não
confessava, os seus algozes retiraram-lhe o pano de cima e passaram a bater-lhe
diretamente sobre a pele com a catana e porretes. Fotos tiradas pelos próprios
agentes mostram o estado chocante em que lhe deixaram as costas.
“Deixei de sentir dores.
Batiam até ficarem cansados. Até o escrivão saiu do computador e veio
espancar-me também.”
A tortura do “avião”
“O Noé ordenou então aos seus
homens que me aplicassem a tortura do avião. Passaram-me primeiro fita-cola nos
braços, e depois amarraram-me, para não deixar marcas”, explicou.
A tortura do avião consiste em
amarrar os braços da vítima pelos cotovelos e juntá-los aos tornozelos, pelas
costas. Puxa-se então a corda, para vergar o corpo numa bola com a nuca a ser
pressionada de encontro aos calcanhares da vítima.
Para estancar o sangramento,
os agentes despejavam álcool puro nas feridas da vítima, de acordo com o seu
depoimento.
A tortura prosseguiu até às
19h00.
Nessa altura, a vítima já se
manifestava disponível para denunciar até Jesus Cristo, se os torturadores
assim o entendessem. “Queriam que eu assumisse o rapto e que eu tinha recebido
o dinheiro. Eu já não sentia dores nem forças no corpo e não conseguia repetir
o que me diziam para gravar. Falava desalinhadamente.”
A tortura do afogamento
simulado
Para garantir total
cooperação, o superintendente-chefe Pedro Lufungula, que assina sempre os
documentos como doutor, tinha mais um método de tortura na manga: o afogamento
simulado.
“Mandou trazer um balde de
água. Punham-me um pano na boca, abriam-na e despejavam água, para me obrigarem
a dizer o que eles queriam”, contou João Alfredo Dala.
Nessa altura veio o maquilador,
que tornou o torturado apresentável para o vídeo. Contou o deponente que um dos
agentes lhe puxava as unhas dos dedos grandes dos pés, com alicate, para o
“estimular” a repetir de forma satisfatória a confissão que os chefes do SIC
lhe ditavam. Depois de oito repetições, o chefe do Departamento do Crime
Organizado, superintendente-chefe Pedro Lufungula, deu-se por satisfeito com o
resultado da gravação, mas prosseguiu com a tortura da água.
Conclusão
O SIC tem no seu seio um antro
de bandidos, energúmenos e assassinos, que se dedicam às piores atrocidades em
nome da lei e da ordem, com o total apoio do governo. Até quando? Será que o
presidente João Lourenço vai continuar a priorizar apenas o discurso contra a
corrupção, ignorando a proteção dos direitos humanos?
Será que o Tribunal Supremo
vai deixar morrer também o pastor zimbabuano Burns Sibanda,
incompreensivelmente impedido pelo sistema judicial de retomar o seu tratamento
contra o cancro?
João Dala será enterrado na
próxima quarta-feira, no Cemitério do Benfica, às 11h00.
Paz à sua alma.
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola,
4-9-2018
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