sexta-feira, 18 de outubro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Oração do desesperado para afastar mulher feia

Aparecido Raimundo de Souza 

ACONTECEU na brejeira e acolhedora cidade baiana de Catingal, distrito do município de Manuel Vitorino na Bahia. Um homem chamado Anselmo, era conhecido por sua simpatia e bom humor, mas também por suas superstições. Ele acreditava piamente em todo tipo de simpatia e oração para resolver os problemas do dia a dia. Do nada, Anselmo começou a se incomodar profundamente com a presença constante de uma mulher linda de corpo em face de suas formas perfeitas. A pessoinha, no fundo, uma deusa feita sobre medida, contudo... de rosto... e, por conta de suas feições depauperadas, parecia o cão chupando manga. 

Em face desse pequeno defeito e insignificante detalhe de fabricação, ele a considerava “feia e fora de esquadro.” A jovem, batizada como Tieta, por azar do destino, sempre aparecia nos lugares que ele frequentava, tipo o bar do Jorge, a igreja do padre Caetano, o restaurante da Ivete, o posto de gasolina do Dorival, o salão de beleza do Gil, o hotel do Quincas Berro D’água... enfim. O fato é que o infeliz, em sua santa ignorância, achava que precisava fazer algo para afastar da sua beira, do seu caminho, a horrorosa da Tieta. Mandá-la para os quintos, de vez, num barquinho de Caymmi para as terras do sem fim. Foi então que lembrou de dona Gal. 

Dona Gal, a conhecidíssima benzedeira oficial da cidade. Vinha gente de todos os lugares (os mais distantes, até de Salvador, a capital do Estado), para se consultar com ela. Toda cidade baiana tem uma benzedeira renomada. A bucólica Catingal, não fugia à regra. Dona Gal, com a sua sabedoria e paciência, ouviu atentamente as queixas de seu consulente. Ela sabia que a formosura se mostrava subjetiva e que o verdadeiro problema estava incrustrado na mente podre e empobrecida de Anselmo. Mas, para não o desapontar, a benzedeira decidiu lhe ensinar uma “oração especial.” 

Dona Gal, por conta, e visando cobrar pela consulta, disse, com um sorriso franco e aberto: 
— Anselmo, meu filho, meus guias espirituais me avisaram que viria. Escrevi durante a noite, depois de uma longa conversa com eles. Leia. Perceba, meu filho, esta é a oração que você deve fazer todas as noites antes de se recolher para dormir e pela manhã, ao pular da cama.
Em contínuo dona Gal entregou ao importunado com a feiura de Tieta, uma folha de caderno com as palavras mágicas. Curioso e esperançoso, Anselmo a partir dessa consulta, começou a recitar a oração conforme prescrita, ou seja, todas as noites e pela manhã como lhe fora indicada. Não poderia, de forma, nenhuma falhar ou a coisa não funcionaria.

Anselmo seguiu à risca, sem pestanejar. Se concentrava:
— Ó, Senhor dos céus e provedor de todas as linhas e correntes. Afaste de mim, sem mais delongas, a visão nefasta e perturbadora dessa esquisitona que julgo feia por pura ilusão. Que eu possa ver nos olhos da Tieta, a compaixão que me falta e encontrar nela, a beleza ímpar, o charme e o deleite que carrega em seu “eu” interior... como a voz maviosa e fascinante de Maria Bethânia... e, de lambuja, o segredo mais poderoso, como se eu visse grudado nos fundilhos dessa boa moça de fechar o comércio, a mocidade pujante da Mãe Menininha do Gantois.

Com o passar dos dias, algo curioso e espantoso, realmente aconteceu. Anselmo percebeu que a sirigaita, antes considerada “feia”, tinha um sorriso formoso e arroubado, e se fazia dona de uma gentileza que ele nunca havia notado. Do nada, se aproximou e começou a prosear com ela. Descobriu entre um encontro regado a bobó de camarão, um vatapá e nos domingos fartas rodadas de cocadas e acarajés, que tinham muito em comum. Aos poucos, a oração da longeva dona Gal se transformou em um pedido para que ele pudesse ver no fundo, a verdadeira exortação, ou seja, aquele deslumbramento interior não só na tal moça, como nas demais pessoas convizinhas ao seu redor.

Deu certo. Anselmo aprendeu uma valiosa lição: a verdadeira beleza, o suntuoso encanto está nos olhos de quem vê, e o quadro mais poderoso – em outras palavras, o escondido não vislumbrado se ocultava exatamente naquele ponto que transforma o nosso interior, sempre para o melhor. Sim, verdade seja dita. Anselmo conseguiu superar seus traumas e medos. A oração da benzedeira que ele passou a recitar todas as noites e pela manhã, não só o ajudou a mudar a sua percepção sobre a mulher que ele considerava “feia”, mas também o fez refletir sobre as suas próprias inseguranças e preconceitos, ao se dar conta da verdadeira beleza nas pessoas ao seu entorno.

Notadamente, a bem da verdade, no ignominioso e revoltante da coitadinha que ele fugia léguas de distância, na fogosidade de um subir e descer como se viajasse nas entranhas do Elevador Lacerda, Anselmo começou a se sentir mais leve e menos desesperado. Aprendeu a valorizar as qualidades internas das pessoas e a apreciar as diversidades de cada ser humano. Com o tempo, o miserável e desastrado se tornou uma pessoa dócil, alegre, mais empático e compreensivo, deixando para trás envolto nas rugas dos seus dias passados, bem ainda a agonia que sentia pela pobre moça, o que o levou a abraçar uma nova perspectiva de vida.

Essa transformação foi um grande e imenso passo para ele, mostrando que, às vezes, a mudança mais importante que precisamos fazer é exatamente aquela dentro de nós mesmos. Nesse tom de cores vivas, a oração que dona Gal ensinou à Anselmo se fez simplória, próspera, incisiva, potente, varonil, afortunada e poderosa. Dois meses depois, Anselmo rodeado de amigos, noivou com a beldade que ele achava desmantelada e o fazia se sentir de alma estropiada. Algumas semanas à frente, Anselmo se casou e num tempo mais rápido ainda, Tieta “engravidada da barriga” foi pega pelas malhas auspiciosas da maternidade dando à luz uma linda e mimosa menininha.

A oração? Ei-la, pois, na integra. Tinha as seguintes palavras numa caligrafia cheia de garranchos: “Ó, Senhor dos Céus, afaste de mim a visão daquela que julgo feia, por pura concepção de outra feiura, ou essa coisa empobrecida que vejo em mim mesmo. Que eu possa apreciar com os bugalhos da compaixão, e, nos finalmente, me conceda encontrar nessa joia rara e deliciosa (que peitos fartos, que bunda, meu Deus – que racha...! –, essas palavras foram acrescentadas por conta do próprio Anselmo. Não fazia, é bom que se diga, da redação original passada por dona Gal) que tanto desprezo, que eu me enrede na beleza de um lar e na magia que ela carrega oculta em cada sorriso que vier a me endereçar...”

Terminava assim:
“O Senhor dos céu e provedor de todas as linhas e correntes. Volto a repetir. Afaste de mim, sem mais delongas, a visão nefasta e perturbadora dessa esquisitona que julgo feia, por pura ilusão. Que eu possa ver nos olhos da Tieta, a compaixão que me falta e encontrar nela, a beleza ímpar, o charme e o deleite que carrega em seu “eu” interior... como a voz maviosa e fascinante de Maria Bethânia... e, de lambuja, o segredo mais poderoso, como se eu visse grudado nos fundilhos dessa boa moça de fechar o comércio, a mocidade pujante da Mãe Menininha do Gantois.””

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Guarapari, no Espírito Santo, 18-10-2024

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