sexta-feira, 4 de outubro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Tantos eram os caminhos que suportavam atalhos...

Aparecido Raimundo de Souza

“A Felicidade é careca. Por isso, ao encontrá-la agarre-a pelos fundilhos dos cabelos.”
Tompson de Panasco

EM UMA PEQUENA cidade nos cafundós do interior de uma localidade meio que afrodisíaca, distada do centro de São Paulo, bem uns mil quilômetros, o tempo parecia ter o mesmo ritmo dos pássaros os mais diversificados, uma vez que eles cantavam em todas as manhãs exuberantes formando uma espécie de vozes de sonoridade inimitável e angelical. Nessa espécie de Éden, entre um emaranhado de ruas, existia uma via antiga e sem asfalto alcunhada de “Rua dos Atalhos.” Não se constituía, esse chão de terra bruta, numa via de rosto comum. Seus residentes o enxergavam como uma espécie de labirinto esquisito –, outros como um ponto mágico –, cuja engenhosidade diziam, se conectava aos recantos mais distantes daquela pacata cidadezinha. Em vez de uma única entrada e saída, a “Rua dos Atalhos” oferecia várias possibilidades de chegada e partida, dependendo do estado de espírito e da disposição de quem desse na telha, e optasse por descobrir seus mistérios por conta própria, correndo riscos não catalogados no famoso livro das curiosidades.

A “Rua dos Atalhos” trazia consigo uma característica única, ou melhor, pitoresca. Sempre mudava sem prévio aviso. Um dia, um caminho que se achava estreito e sinuoso poderia se transformar logo em seguida em uma tramontana larga e reta como ventos impetuosos. Muitos íncolas se acostumaram a esses caprichos e aprenderam a aproveitar essas mudanças constantes. Eles acreditavam que apesar de não se estender por mais de trinta quilômetros, seus cursos entrelaçados escondiam, no meio das rajadas de poeira forte e pegajosa, além do vento, um segredo, ou quem sabe vários: por conta disso, seus atalhos (pelo menos uns quinze) considerados infindáveis não existiam para encurtar as pernadas de quem passava por eles, fosse indo ou vindo, mas para permitir uma nova perspectiva sobre a marcha a ser vencida. Em meio dessa galera, a menina Érica. Uma bela e formosa criatura de vinte anos, que morava frenteado ao único acesso que levava ao heteróclito. Moradora de poucos anos, vivia com os avós. Em questão de semanas, de tanto ouvir falar, de tanto escutar comentários os mais escabrosos, chegou um dia que se vira deslumbrada com a engenhosidade do tal caminho que se perdia de vista.

Belo dia, assim do nada, decidiu explorar cada atalho possível, com a esperança de descobrir um que a conduzisse diretamente para algum ponto ainda não visitado. Assim, em um de seus passeios, optou por vadiar de braços dados com o obscurecido. Partir para o tudo ou nada. Com essa ideia na cabeça, se pôs em marcha. Quilômetros depois, quase uma hora de sol à pino, encontrou uma placa escrita em letras de má caligrafia. Dizia: “Este atalho leva ao âmago do seu coração.” Impetuosamente curiosa, Érica decidiu seguir por ele, ansiosa, destemida e sem medo, objetivando alcançar o destino prometido. No entanto, a cissura que se postara a seus esbugalhos, não se fazia tão fácil e direto, quanto ela imaginava. Em vez disso, a preciosa encontrou pela frente um sinuoso longo e penoso, serpenteado por entre árvores de sombras acolhedoras e pequenos lagos lhe dando a sensação de estar perdida em um bosque. Num primeiro momento, lhe pareceu contemplativo. Por várias vezes, Érica pensou em voltar, desistir da empreitada, mas algo a impelia continuar.

No meio da jornada, meia hora e pouco depois, talvez mais, encontrou um carcomido banco de madeira abandonado debaixo de imponentes pés de mangas que a primeira impressão pareciam tocar o céu. Em face do cansaço achou por bem dar uma freada e descansar os pés ausentes de sapatos. Foi nesse momento, ao se acomodar, teve a noção do quanto estava apreciando a viagem, observando que em cada passo se revelava à luz de seus anseios, uma nova descoberta, não sobre a localidade, em torno de si mesma, e, em paralelo, igualmente sobre a cidade que parecia mais rica do que imaginara. Quando finalmente achou que havia descansado o suficiente, se embrenhou de novo em passos largos. Chegou ao fim da viagem, e num piscar de olhos, concluiu que não estava no coração de uma cidade ou de um lugar físico, porém, enleada em um novo entendimento sobre a própria vida. Descobriu também, pasma e sem palavras, que o verdadeiro valor daquele atalho escolhido, não se moldava somente em topar com uma rota rápida em busca do oculto reconditado.

Pelo contrário, compreendeu e vivenciou que muitas vezes, cada passo dado se fazia insigne e acolhedor. Cada passo, a direcionava não unicamente a um destino final e medíocre, em algo que compensaria toda a sua andança até aquele momento. Captou alegremente a mensagem em tempo de observar que não chegaria nunca a um destino. Em seu regresso, não sabe quantas horas, residia simplesmente numa conquista vitoriosa onde a majestade inundava seu “eu” interior repletado da mais verdadeira e deslumbrante beleza. Inspirada por essa experiência, Érica, ao voltar para seu lar, começou a compartilhar as suas histórias e descobertas com os outros moradores. Nesses relatos, falava com uma alegria contagiante e efusiva sobre como o desvão (especificamente por aquele onde ela se embrenhou ao deixar a “Rua dos Atalhos”) não se moldava em apenas uma forma de evitar trilhos longos, mas sim direcionava para novas oportunidades onde se vivenciaria algo inesperado e profundo.

O povo do pacato lugarejo, a partir do que ela espalhava para um e outro, começou a ver a “Rua dos Atalhos” não apenas como um logradouro peculiar, em oposto, como uma espécie de símbolo indescritível na certeza de que as demais artérias existentes ao longo se seus trinta quilômetros, se faziam imensamente ricos e gratificantes, obviamente na maioria de quem resolvia se embrenhar por eles, não achasse as viagens confortantes exatamente por não serem diretas. Com o decorrer dos anos, graças ao achado da Érica, a “Rua dos Atalhos” e suas bifurcações continuou a sua dança caprichosa entre as mudanças diárias e as novas descobertas. As pessoas resolveram caminhar mais, não só pela magia das paisagens. Aprenderam a promover encontros, a fazer piqueniques, a valorizar a jornada com visões mais profundas, reconhecendo que as veredas e picadas, embora muitas vezes cansativas e sinuosas, tinham o poder de mostrar algo real e funambulesco: a importância de não apenas chegar ao destino da cortadura escolhida, sobretudo, de poder unir as famílias, os pais e filhos, os idosos a apreciar cada passo dado ao longo da escolha feita.

Assim dessa forma, em cada curva, em cada esquina, em cada jardim repletado de árvores frondosas, a “Rua dos Atalhos,” e suas ramificações, cada um de seus mais de seis mil e poucos residentes (cada um a seu tempo), encontrou uma nova forma de se sentir em paz, de ver a alma leve, livre e solta, os olhos destituídos das tristezas e melancolias, dos estragos malfeitores do dia a dia. Cada caminhada, revelava, incontinente, que as melhores excisões se moldavam aquelas amputações surgidas da via principal, e não só isso, permitiam, mostravam claramente e a cada aventureiro que tivesse coragem, perceber a profundidade soberba, digerir de bom grado como um prato saboroso, a beleza da vida, exatamente naquele fim de mundo, onde todos se aconchegavam, sem saber que a Felicidade, a tão procurada e sonhada Felicidade, embora parecesse longe, divorciada, de certa forma desprezada e esquecida, jogada ao léu, se fazia ali, tão perto, tão carente e próxima, tão sutil... e o melhor de tudo, ao alcance de quem desse o primeiro passo.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo, 4-10-2024

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Um comentário:

  1. O texto de Aparecido Raimundo de Souza, publicado em 4 de outubro do corrente ano, encanta a começar pelo título. Percebam a maviosidade. Tantos eram os caminhos que suportavam atalhos. Só o nome nos faz viajar. No meu entender, essa preciosidade é mais uma crônica que acredito, além de encantar, faz com que pensemos em coisas boas e maravilhosas. Fatos que, apesar de corriqueiros, nos colocam para cima. Ele descreve uma cidadezinha pitoresca e mágica, onde a Rua dos Atalhos oferece múltiplos caminhos e possibilidades, mudando constantemente e desafiando seus moradores a descobrir seus segredos. No texto Tantos eram os caminhos que suportavam atalhos, Aparecido Raimundo de Souza parece explorar a ideia de que a vida é cheia de caminhos e escolhas, muitas vezes inesperadas e mutáveis. A tal da Rua dos Atalhos simboliza esses caminhos que, apesar de parecerem atalhos, não necessariamente encurtam a jornada, mas oferecem como prêmios extras, experiências e descobertas únicas. A mensagem central, ou o âmago da crônica, pode ser interpretada como uma reflexão sobre a importância de aproveitar as oportunidades e os desvios que a vida oferece, mesmo que eles não levem diretamente ao ponto g, ou ao destino desejado. Esses caminhos alternativos podem revelar segredos e proporcionar crescimento pessoal. Entendo que o texto tem também uma lógica poética e simbólica. A Rua dos Atalhos pode ser vista como uma metáfora para a vida e suas inúmeras possibilidades. Aqui citarei apenas algumas passagens que podem ajudar a entender melhor essa lógica a qual me refiro. Para começar, eu aplicaria o que cognominei de a metáfora dos Caminhos. O que venha a ser isso? A rua representa as diversas bifurcações que podemos tomar na vida. Cada atalho simboliza uma escolha ou oportunidade que pode levar à diferentes experiências e descobertas. Em seguida, eu cairia matando na mudança constante: A característica da rua em mudar num abrir e piscar de olhos prévio. Essa modalidade vamos chamar assim, reflete a natureza imprevisível da vida. Assim como a rua, as nossas vidas estão em constante mudança e por conta, precisamos nos adaptar a elas. Os atalhos não são apenas para encurtar a jornada, mas para permitir que as pessoas descubram novos aspectos de si mesmas e do mundo ao seu redor. Isso sugere que o verdadeiro valor está na jornada e nas experiências vividas, não apenas no destino final. Temos também um outro ponto importantíssimo. A realização de sonhos. A ideia de encontrar ou realizar sonhos na Rua dos Atalhos pode ser interpretada como a busca pela felicidade e pela realização pessoal. Os sonhos podem ser encontrados nos lugares mais inesperados, e é preciso estar aberto às possibilidades que surgem ao longo do caminho. O texto, portanto, usa a fictícia Rua dos Atalhos como uma forma de nos lembrar que a vida é cheia de surpresas e que devemos estar dispostos a explorar e aproveitar cada oportunidade que aparece. O que você que teve a paciência de me ler, diga ai, o acha dessa interpretação? Caso não concorde, deixe seu comentário e nome. Juro que entrarei em contato
    Tatiana Gomes Neves do Sítio Shangri-Lá. Divisa de Espírito Santo com Minas Gerais
    tatianagomesnevesistoegente@gmail.com

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