Aparecido Raimundo de Souza
ARABRUTO ACORDOU eufórico. Estava decidido. Aquele dia iria liberar seu lado cachorro. Desde que Anabela viera trabalhar em seu apartamento, na Belizário Pena, na Ilha do Governador, como secretária do lar, prestando os serviços mais variados, nas quintas e sextas-feiras, Arabruto desembestou, assim do nada, seu lado canino. Pôs na cabeça que dessa sexta-feira não passaria. Assim que a graciosa chegou, como sempre, bem vestida, arrebatada num meio-vestidinho que lhe deixava as pernas bem torneadas à mostra, entre outros atrativos pecaminosos, o desregulamento da sua cabeça degringolou de vez. O fato é que todo o conjunto da bela, em sintonia com o pecado carnal, deixava fora de órbita qualquer ser humano que não tivesse um pingo de juízo no cérebro. A musa suscitava uma fome danada para nenhum marmanjo colocar defeito.
Arabruto, um desses manés que, desde que a moça aportara em sua casa, vivia engendrando uma maneira de pular em cima dela com a ferocidade devastadora que lhe consumia as entranhas. Seus instintos estavam, realmente, à flor da pele. O presente texto contará tudo como de fato aconteceu, sem tirar nem pôr.
— É hoje, é hoje que me esbaldo... – teria dito Arabruto pouco antes de partir para o tudo ou nada.
Como sempre, no horário habitual, a deusa encantada chegou. Antes de se dar em serviço, interfonou da portaria. Arabruto atendeu. Sabia, antecipadamente quem se fazia do outro lado da linha. Se arreganhou em mesuras:
— Minha fofa, nem precisava avisar. Você é parte das boas coisas do meu dia a dia. Tem a chave. Bastava pegar o elevador e se pôr a caminho...
Anabela educadamente deu a resposta:
— Bom dia, seu Arabruto. Sua esposa me ligou e pediu para eu passar aqui na padaria. Falou que a última caixa de leite havia sido aberta. Aproveito e levo uns pães frescos...
— Ótimo, Anabela. Tem dinheiro?
— Quando eu for embora, no final do expediente, o senhor ou dona Isaltina me reembolsam... pode ser?
Assim aconteceu. Quando a moça entrou pela única porta existente –, ou seja –, a da sala, Arabruto a esperava escondido deitado no chão, atrás da geladeira, camuflado de um jeito que ela não o veria, quando ingressasse na peça. Aquela se fazia a primeira vez que o seu chefe agia daquele jeito. Não deu outra. Anabela tomou, pois, em consequência, um susto grandioso. Sua reação, não poderia ser pior. Como nunca antes o desmiolado se escondera, ou brincara de se passar por um cachorro, e pior, latindo, e pegando nas pernas dela, à altura dos joelhos com as mãos à guisa de abocanhada de um totó encarniçado, o desespero da prestadora nota mil se fez pavoroso e inevitável. Anabela, em ato de se precaver, passou a mão no primeiro objeto que encontrou. Uma panela cheia de feijão em cima do fogão. Sem pensar duas vezes, meteu a sua arma de resguardo improvisada em ação e o fez com toda força de suas agilidades, atingindo diretamente os cornos de Arabruto. Em face do intempestivo, a moça deixou cair por terra o saco de pão e a sacola com a caixa de leite que trouxera consigo.
Por conta dessa brincadeira desastrosa e não programada, e, claro, de estropiado gosto sinistro, Arabruto arranjou uns bons cortes e galos na cabeça, bem ainda nas costa e pernas. Caso passado, susto refeito, o resultado do vexame, atonou:
— Seu Arabruto, me desculpa. Que baita cagaço! O que fazia metido aí nos fundilhos da geladeira?
— Esperando você...
— E para quê?
— Você sabe, não é de hoje prometi a mim mesmo lhe daria umas mordidas de brincadeirinha. Olha como você me deixou...
A moça obviamente espiou, mas nada disse a respeito do que presenciava. Aproveitando o ensejo, se defendeu:
— Eu não esperava essa atitude de sua parte. O senhor ficou maluco? Olha como lhe deixei. Meu Deus, vamos para o pronto socorro aqui da Ilha, logo ali na Estrada do Dendê. Está jorrando muito sangue. Rápido, preciso dar conta do serviço ou a sua esposa vai trepar nos cascos e me botar de volta para Bonsucesso com passagem só de ida...
Entretanto, não deu tempo. Dona Isaltina, a mulher de Arabruto, por algum motivo incalculado pintou de volta, dez minutos depois, não comparecendo aquela manhã ao seu local de trabalho. Em face disso, deu com a empregada toda melosa, o vestido curto mostrando o que não devia, socorrendo seu marido, os dois acomodados no chão.
Para engrossar o caldo, na justa hora do assomo na cozinha, Anabela tentava estancar o sangue do coruto e também dos olhos e queixo do abestalhado, com ele acomodado tipo uma criancinha desprotegida em seu colo de fundo rosa. E o desgraçado sem vergonha se aproveitando da situação, mantinha os braços envoltos em torno do cachaço da prestimosa. Esse flagra deu um puta “BO,” ou melhor, um tumultuado “BU” (Boletim Unificado), na 37ª DP da Ilha do Governador, na estrada do Galeão, uma vez que a empregada, coitada, precisou explicar, toda confusa, à sua patroa, pormenorizadamente os motivos do marido dela, ensanguentado estar literalmente atarracado em seus braços e nuca.
Final da tragédia, prevaleceu a mordida de um cachorro vira-lata e seus latidos invisíveis que sequer existiram. Caso passado, início de noite desse mesmo dia, depois dos curativos no hospital, compra de remédios e mentiras sem pé nem cabeça, o casamento de Arabruto e Isaltina culminou em separação. Sumariamente despejado, o desditoso jogou no ralo um relacionamento de quase trinta anos. Sem saída, as tralhas jogadas no elevador de serviço, o doidivana se aquartelou, às pressas, na casa de uma filha casada (rebento advindo da união dele com a sua adorada Isaltina). Quanto a ela, tão logo recuperada do baque, trocou de empregada e continuou tranquilamente em seu cargo. Isaltina exercia a função de assistente de uma empresa de advogados famosos na Avenida Presidente Vargas, quase às barbas da Igreja da Candelária e realizava as suas habilidades, desde quando ainda nem pensava em se unir ao Arabruto.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 1-10-2024
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Está cada vez mais difícil e ao mesmo tempo interessante falar dos textos de Aparecido Raimundo de Souza. E porque difícil? Pelo simples fato dele, escritor, e seus impulsos caninos, além de narrar uma situação cômica e inusitada, explora temas como a impulsividade e as consequências das ações sem pensar nas repercussões. O objetivo do impulso, pode ser visto como uma crítica canina ao comportamento infantil e irresponsável de Arabruto, que, ao tentar liberar seu lado "cachorro" acaba gerando um grande mal-entendido e consequências desastrosas. Interessante, pelo motivo de nos alertar sobre a importância de refletir sobre nossas ações e suas possíveis repercussões na vida dos outros, especialmente nas relações pessoais. O que parece ser uma brincadeira inofensiva pode ter consequências sérias, como a separação de um casal após trinta anos de relacionamento. No caso específico da Isaltina, a reação dela não é apenas uma resposta a um incidente engraçado. Reflete a falta de maturidade e respeito de Arabruto por sua esposa e o estado do relacionamento deles. Essa situação evidencia que a confiança e a comunicação são fundamentais em um relacionamento, e que pequenas ações podem levar a grandes rupturas se não forem bem pensadas. A mensagem central do autor além de engraçada gira em torno da sua ironia em vista das ações impulsivas e das consequências que elas podem trazer para a vida pessoal. O texto de Aparecido utiliza uma espécie de humor negro em exagero para mostrar como comportamentos imaturos podem desestabilizar relacionamentos, mesmo aqueles que parecem sólidos. O objetivo a meu entender de simples leitora, é que o Aparecido quis provocar uma reflexão de nossa parte, sobre a responsabilidade nas relações interpessoais. Arabruto, ao agir de forma leviana e tratar sua relação como uma brincadeira, acabou destruindo um casamento de longa data. Essa lógica sugere que a falta de consideração e a busca por diversão a qualquer custo podem ter repercussões profundas e inesperadas. O texto também traz à tona questões sobre as dinâmicas de poder e o papel das expectativas dentro de um casamento. A desilusão de Isaltina ao ver seu marido em uma situação tão degradante ilustra como desrespeitos e falhas de comunicação podem levar a rupturas irreparáveis. O Aparecido, autor de um modo geral, convida o leitor a refletir mais pausadamente sobre a seriedade das relações e a importância de agir com maturidade e respeito. É o que penso.
ResponderExcluirTatiana Gomes Neves (Tati).
tatianagomesnevesistoegente@gmail.com
do Sítio Shangri-Lá, divisa entre o ES e MG.