A tradição cristã atribui ao
primeiro homem a responsabilidade sobre a concretização do pecado e, como
consequência, a expulsão do paraíso. Se não fosse pela curiosidade de Adão,
atiçada por Eva, jamais conheceríamos o pecado ou tudo que ele representa: sofrimento,
angústia, dor.
Mas por que retornar à origem
da humanidade? Porque ironicamente Adão é o nome do mais novo bode expiatório
da Saúde Pública brasileira, o inimigo público número 1. Para os que ainda não
captaram vou resumir: na véspera do Natal uma menina foi vítima de uma bala
perdida que atingiu sua cabeça, foi levada ao Hospital Municipal Salgado Filho,
onde foi diagnosticada a lesão, mas o neurocirurgião escalado não comparecera
ao plantão, faltou. A menina ficou aguardando na unidade pela chegada do
especialista da equipe seguinte, perdeu-se 8 horas em um paciente com lesão
neurológica. O caso ganhou a imprensa e todos os dedos apontam para o Dr. Adão,
como podemos observar pelas manchetes de hoje: "Morre a menina que ficou
oito horas esperando atendimento", "Diagnosticada morte cerebral de
menina vítima de médico que faltou o plantão".
Enquanto a opinião pública se
dá por satisfeita por ter encontrado o culpado, vejo neste caso claramente o
jogo dos sete erros da Saúde Pública, a saber:
1. O próprio Dr. Adão que se
expôs a este tipo de situação ao optar por faltar ao plantão errou gravemente.
Observe-se no entanto que ele não infrigiu a lei, apenas exerceu o direito de
qualquer empregado: faltar. Um empregado pode faltar ao emprego quando quiser,
haja visto que por ocasião da disputa do título mundial de futebol pelo
Corintians diversas pessoas foram entrevistadas afirmando que faltariam o
emprego para acompanhar o time do coração (o curioso é que em nenhum destes
casos a imprensa deu conotação negativa a este comportamento como fez com o
neurocirurgião). O empregado que falta está sujeito a diversas consequências,
aparecer como vilão na imprensa, no meu modo de ver é apenas uma delas.
2. O chefe do plantão errou de
forma ainda mais grave já que sua equipe atendeu um paciente com grave
traumatismo cranioencefálico e, na impossibilidade de dar na unidade o
tratamento necessário, não solicitou transferência para uma unidade que
estivesse apta a este atendimento, aqui podemos ver fortes indícios de omissão
ou negligência. A imprensa tem dado tanta atenção a falta do Dr. Adão que não
informa se houve a solicitação para a remoção da menina. Se houve, o chefe
cumpriu com seu dever e jogou a bomba para a central de regulação e para as
secretarias municipal e estadual de saúde.
3. A secretaria municipal de
saúde errou ao não cumprir a resolução 100 do CREMERJ que determina a
necessidade de 2 neurocirurgiões nos plantões em emergências de grande porte.
Esta exigência não é descabida e muito menos corporativista como afirmou o
prefeito Eduardo Paes. Imagine que o Dr. Adão estivesse em seu posto no dia 24,
que tivesse avaliado a criança e indicado a cirurgia, quem seria seu auxiliar?
Teria de operá-la sozinho? E se chegasse outro paciente em condições semelhantes?
E se ele passasse mal durante a cirurgia, se infartasse, quem terminaria o
procedimento? O prefeito foi especialmente infeliz ao comentar esta resolução
porque disse "...não adianta vir com o papo corporativista que precisa de
dois (neurocirurgiões). Não precisa de nada, ele tem de ir ao plantão..."
ato falho ele revelou o que pensa sobre os hospitais de emergência sob sua
administração "não precisa de nada". Não é verdade, como podemos
observar. Equipes completas são mais eficientes, sofrem menor desgaste e podem
atender de forma mais adequada a população. Este é o teor da resolução do
Conselho.
4. O SUS, em sua precária forma de organização, errou porque não é capaz de prestar de forma 100% adequada o atendimento pré-hospitalar, se este atendimento fosse adequado os pais teriam acionado o SAMU, que chegaria rapidamente, daria o primeiro atendimento e levaria a criança a um hospital que pudesse dar-lhe o melhor atendimento. Funciona desta forma em todo o mundo, aqui no Brasil o SAMU é apenas um outdoor do governo, mesmo quando faz o primeiro atendimento de forma ágil não consegue ter um relacionamento minimamente adequado com a rede objetivando a melhor destinação do paciente.
5. O chefe do serviço de
neurocirurgia do Salgado Filho, supostamente avisado previamente da ausência do
seu subordinado, por não ter antecipado o problema, ou por não ter resolvido o
ocorrido. Se um plantonista falta, o chefe deve ser contactado, e na ausência
de um substituto para o faltoso, ele próprio deve assumir o plantão. Existe aí
mais um aspecto do caso, como exigir que o chefe tenha tantas responsabilidades
sem uma contrapartida a altura? Na maior parte dos serviços públicos a
gratificação pela chefia do serviço não atinge R$100,00! Novamente, o setor
público não se organiza no macro e nem no micro. As esferas federal, estadual e
municipal não se relacionam, as unidades não se relacionam, os serviços dentro
destas unidades não se relacionam e os indivíduos dentro dos serviços não se
relacionam. Desta forma, qualquer êxito do sistema de saúde só pode decorrer de
duas condições: esforço de um ou de alguns indivíduos, ou mera sorte. Abordar
uma menina com um tiro na cabeça é simples, ela precisa ser operada. Mas como
fazer com lombalgias (a segunda causa mais frequente de absenteísmo ao trabalho
nos EUA)? E os tumores, aneurismas e demais patologias neurocirúrgicas de
caráter eletivo? Apenas com redes de atendimento coordenadas e integradas é
possível garantir o atendimento de todos, entretanto, até o momento não há
vestígio deste tipo de organização no sistema de saúde fluminense.
6. Errou a secretaria de
segurança que permite que pessoas tenham e utilizem armas de grosso calibre e
que até o momento não apresentou o responsável pelo disparo. O que matou a
menina não foi a falta do Dr. Adão, ele poderia mesmo tê-la operado e o
desfecho ser trágico, ccomo foi, não temos garantias, a lesão inicial já era
suficientemente grave. Claro que o atraso no atendimento não ajudou, mas a
lesão inicial foi decorrente da violência de nossa cidade, haja visto que mais
4 foram vitimados somente nos últimos dias, sem a participação do Dr. Adão. Até
o momento nenhum responsável foi apresentado. Vivemos numa cidade violenta, que
dá pouco valor a vida alheia e permeada pela ineficiência policial e pela certeza
da impunidade.
7. A imprensa, por fim, tem de
penitenciar-se por seus erros. Ao abordar o caso se rendeu a ideia que o Dr.
Adão é o inimigo público número 1. Não é, embora o seu ato tenha suscitado este
tipo de raciocínio e ele certamente está pagando por sua escolha, e certamente
será julgado por seus atos, mas enquanto ele é crucificado sozinho, no melhor
estilo boi de piranha, o restante da boiada de responsáveis está passando
incólume, alguns até, como o prefeito, com voz ativa na mídia para desferir
impropérios contra o doutor, desviando a atenção da sua omissão diante da
resolução 100 do CREMERJ. O próprio conselho, associado ou não ao sindicato dos
médicos, teve em 2012 diversas ações em defesa da medicina pública, alertando
para os riscos envolvidos na terceirização do atendimento, que no entender do
STF é ilegal, e na carência de profissionais na rede. Raramente a imprensa
repercutiu estas ações, mas sempre deu grande espaço as versões oficiais, mesmo
quando elas não tinham respaldo na realidade, como no caso em questão. Eu não
vi, em nenhum momento, a imprensa confrontar o prefeito e sua secretaria de
saúde pelo não cumprimento de uma resolução do CREMERJ que tem força de lei (o
conselho é uma sucursal de uma autarquia federal cuja objetivo é regulamentar a
atividade médica). Assim, não sei se de forma deliberada, ou meramente por uma
miopia do seu papel, a imprensa tem se comportado como "chapa
branca", um púlpito onde os governantes discursam, mas nunca dialogam.
Ainda ontem o jornalista Elio Gaspari faz referência ao Dr. Ribeiro Neto, que
lamentou-se por não ter recorrido a imprensa para denunciar o desmonte da saúde
pública. A dúvida que temos hoje, é se há voz para os que querem discordar do
governo ou se todos são colocados no balaio de golpistas, corporativistas,
vagabundos, delinquentes, etc. Desde o ano passado tenho observado uma série de
colegas buscando a imprensa para denunciar o que vivem em seus cotidianos de
médicos de unidades públicas, especialmente federais, mas os resultados em
relação a publicação ou repercussão é desanimador.
Sou médico, funcionário
público federal, mas já atuei em todas as esferas. Sou filho de médico, também
funcionário público, hoje aposentado (recebendo o miserável salário de menos de
R$2000,00 após ter dedicado 33 anos ao serviço público estadual). Procuro
executar minhas tarefas dentro dos meus compromissos éticos e profissionais,
não tenho nem de longe o brilho de um Ribeiro Neto, por isso mesmo não tenho a
ilusão de que isto venha a ser publicado. Compreendo a revolta das pessoas
diante de casos como o de Adrielly, mas não posso suportar generalizações e
declarações referindo-se aos médicos como "máfia de jaleco", que ouvi
na imprensa me motivaram a escrever esta carta. Temos maus médicos, maus
carteiros, maus policiais, maus jornalistas, etc. Até mesmo bons profissionais
estão sujeitos a maus passos e devem assumir suas responsabilidades, mas
condenar uma maioria de bons profissionais por erros alheios e eximir de culpa
os coautores do delito é inaceitável.
Sou médico, como já disse, não
me sinto especial por isso. Escolhi minha profissão como todo mundo, e a
executo como todo mundo, procurando fazer o melhor possível, as vezes eu
consigo, as vezes não, como todo mundo. Mas não economizo meu esforço. Conheço
muitos colegas que compartilham desta conduta, por isso, só por isso exijo
respeito a minha profissão, não somos vilões e nem mocinhos, não salvamos e não
matamos, só trabalhamos, cuidamos, ajudamos, nada que qualquer outro
profissional não faça. Solicito somente que casos isolados sejam tratados
conforme sua individualidade. Milhões de pessoas são atendidos pela rede
pública de saúde, pelo menos alguns dependem quase que exclusivamente dos
esforços de profissionais, médicos ou não, e nenhuma linha é publicada, nenhuma
generalização é feita. Respeitem-nos, não somos santos nem demônios, somos,
apenas.
Adão, afinal, não deu-nos
apenas o pecado, mas ao originar Eva, deu-nos toda a dimensão da humanidade, da
diversidade e do amor.
Atenciosamente,
Alberto Vieira Pantoja
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