Paulo Tunhas
Reflectir sobre Outubro? Sem dúvida. Para
limpar das cabeças os mausoléus de Lenine que lá ainda habitam, como em certas
invocações nostálgicas de virtualidades não realizadas do nosso “25 de Abril”
Em 2016 comemoraram-se os
quinhentos anos passados sobre a publicação da Utopia de
Thomas More.
Em 2017 é a vez dos cem anos
da revolução russa. Alguns verão uma ligação, mais implícita ou mais explícita,
entre as duas coisas, outros tenderão a acentuar as dissemelhanças. Um facto
responde a um ponto de vista e outro. Nos primeiros tempos da revolução
planeava-se a construção de um monumento a More: ficou o mausoléu de Lenine.
É habitual, numa certa
história das ideias, ver as utopias, e em primeiro lugar a de More, como
precursoras do totalitarismo. De facto, começa-se até, por vezes, na
proto-utopia que é a República de Platão – mas deixemos Platão
de lado. E é verdade que na ilha ideal imaginada por More há muita coisa que
favorece uma tal interpretação, como, de resto, em muitas das utopias ao longo
dos tempos concebidas. O culto de uma perfeita uniformidade, tanto no vestuário
como na habitação, a abolição da propriedade privada, o desejo patente de
imutabilidade, e por aí adiante.
Mas convém não levar longe
demais a tentação da comparação. Em primeiro e definitivo lugar porque tal
operação releva daquilo que um filósofo, Bergson, chamou o “movimento retrógado
do verdadeiro”, isto é, o vermos o presente como a actualização de algo já
existente, de uma maneira ou de outra, no passado.
O totalitarismo, na medida em
que a expressão possui real poder para abarcar realidades tão distintas como o
comunismo chamado soviético e o nazismo alemão, é uma criação histórica do
século vinte. É duvidoso imaginá-lo previsto num passado distante. Além disso,
várias utopias, como a do genial e delirante Fourier, encontram-se nos
antípodas dessa vocação para a uniformidade e a imutabilidade na qual supostamente
reside o germe do totalitarismo.
A analogia entre as utopias e
o totalitarismo é, portanto, em parte falaciosa. E o que é curioso é que essa
falácia, a identificação de uma realidade próxima de nós com uma construção
passada, reproduz, sob forma invertida, um movimento de pensamento que se
encontra presente em toda e qualquer construção utópica: a ideia segundo a qual
uma sonhada sociedade perfeita tem forçosamente de existir, a necessidade da
sua existência decorrendo imediatamente da própria perfeição da ideia.
Exactamente como na chamada, desde Kant, prova ontológica da existência de
Deus, tal como Descartes a formulou: um ser tão perfeito tem necessariamente de
conter, como seu predicado, a existência. No grosso das utopias, imagina-se uma
realidade contrafactual, que, pela sua absoluta perfeição, em nada corresponde
ao movimento presente da sociedade e salta-se alucinatoriamente a pés juntos
para ela.
O que nos leva, a caminho da
revolução russa, ao marxismo. O marxismo pouco tem a ver com a tradição
utópica. E não por possuir um conteúdo científico que faltaria aos utopistas. A
oposição, celebrizada por Engels, entre “socialismo utópico” e “socialismo
científico” é radicalmente falha de conteúdo, pela simples razão de não haver
nenhuma ciência marxista da história. A diferença substantiva entre o marxismo
e as utopias reside no facto de o comunismo ser visto exactamente como
decorrendo do próprio movimento da história, de estar necessariamente inscrito
nesse movimento. Não há salto a pés juntos para fora da história, como nas
utopias. Há um salto em comprimento no interior da própria história.
Em relação ao marxismo, de
resto, pode-se dizer algo de próximo do que antes foi dito sobre a relação das
utopias com o totalitarismo. Por mais críticas que se possam fazer ao projecto
de uma impossível ciência da história dotada de poderes preditivos e por mais
inequívocas que sejam as proclamações de Marx contra o “direito burguês”, um
poço de “traficâncias de ideólogos e de juristas”, e contra a “velha litania democrática
que corre o mundo”, a “democracia vulgar”, o “democratismo” (algo que, diga-se
de passagem, está ainda na cabeça de qualquer PC que se preze), o salto que
permite fazer de Marx um inequívoco apóstolo do totalitarismo não é de todo
evidente. Há demasiados defeitos próprios ao marxismo para precisarmos de lhe
acrescentar mais esse.
O totalitarismo é algo que
nasce mesmo com a revolução russa. Não em Fevereiro de 1917, que representa,
como alguém lembrou, a única contribuição da Rússia para a história da
liberdade, mas em Outubro, esse Outubro que será efusivamente celebrado por
alguns, em que um partido totalitário, o partido bolchevique com Lenine à
cabeça, tomou conta do Estado e construiu uma das mais monstruosas sociedades
que a humanidade jamais conheceu. A literatura que narra esse horror é inúmera
e ao alcance de todos. Não há, por isso, necessidade de insistir na matéria.
Em contrapartida, é útil
lembrar que a herança da monstruosidade se estende muito para além dos
comunistas propriamente ditos. O mausoléu de Lenine está, ainda hoje, dentro de
muitas cabeças que nunca leram Marx nem juram pelo comunismo. Em França, por
exemplo, e apesar de célebres rupturas históricas com os comunistas, a ideia de
que à sociedade presente, a tal do “direito burguês”, deve suceder uma
diferente formação social, governada por princípios inteiramente distintos,
ocupou a cabeça da parte mais significativa dos socialistas (Mitterrand
incluído, na medida em que é lícito atribuir-lhe convicções sólidas). E em Portugal
essa crença não se encontra completamente arredada dos cérebros dos seus
congéneres. É ver o muito palpável sentimento de superioridade moral que
inescapavelmente está presente na conversa de muitos convictos locais. Ele
decorre desse tal fundo de pensamento.
Reflectir sobre Outubro? Sem
dúvida. Não para celebrar a criação inaugural da formidável impostura
totalitária, com o seu inenarrável cortejo de horrores, nem para, a seu
propósito, descobrir mais do que discutíveis filiações utópicas. Antes para, na
medida do possível, limpar das cabeças os mausoléus de Lenine que lá ainda
habitam e cujo pó ainda mexe, por exemplo, em certas invocações nostálgicas de
virtualidades não realizadas do nosso “25 de Abril”. O que, a ser desenvolvido,
levaria a uma conversa mais longa sobre o facto de, com o tempo, se ter tornado
verosímil que a direita democrática seja mais respeitosa dos processos formais
da democracia do que a esquerda democrática, para não falar da outra. Mais por
uma privação do que por uma qualidade intrínseca: a privação do desejo latente
de ir além da pedestre democracia.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
5-1-2017
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