"Sentindo-se inseguras, as pessoas
começarão a desejar governos fortes, pulsos firmes, autoritários, musculados. E
não há dúvida de que, em momentos de aflição, as ditaduras funcionam melhor do
que as democracias"
José António Saraiva
As pessoas estão metidas em
casa – as que podem – esperando que o vírus passe.
E todas acreditam que, quando
a epidemia passar, daqui a dois ou três meses, tudo voltará ao normal.
Ora isso, infelizmente, não
vai acontecer.
O nosso modo de vida vai mudar
radicalmente.
Nada voltará a ser como
dantes.
Pensemos nos restaurantes De
um momento para o outro ficaram vazios.
Perante isso, muitos decidiram
fechar as portas: para quê manter a cozinha a funcionar, o serviço de mesas a
funcionar, para meia dúzia de clientes?
E os que ainda o não tinham
feito fizeram-no por força do estado de emergência – e poucos se adaptarão tão
cedo aos novos moldes de funcionamento.
Ora, o que farão aos
empregados: continuarão a pagar-lhes, despedi-los-ão ou recorrerão à ajuda
especial do Estado?
Se continuarem a pagar-lhes,
nalguns casos haverá falências, até porque não se sabe quanto tempo isto irá
durar; mas o dinheiro do Estado não chegará para tudo...
E os fornecedores dos
restaurantes, o que será deles? Sem clientes, pararão.
E com os bares e os
fornecedores dos bares vai acontecer o mesmo: fecharão as portas e deixarão de
laborar.
E a maior parte do comércio
com porta para a rua, mesmo aquele que não foi obrigado a encerrar, seguirá
este caminho: com as pessoas fechadas em casa, para quê manter a porta aberta?
E com os quiosques, as
papelarias e as livrarias fechadas, reduzir-se-ão brutalmente os locais para
comprar jornais, revistas e livros.
E toda esta indústria tenderá
a parar: redações, tipografias, distribuidoras, fornecedores de papel…
E, claro, tudo o que é
espetáculo parou. O cinema, o teatro, os
concertos, as touradas, o futebol.
Para já, este campeonato de
futebol e a Taça de Portugal dificilmente terminarão.
E, sem jogos, não há
transmissões televisivas, que eram uma das principais fontes de receita dos
clubes; sem jogos, também acabam as receitas de bilheteira e os patrocínios; e
os sócios a pouco e pouco desistirão: para quê ser sócio de um clube se não há
jogos para ver?
E como poderão os clubes
sobreviver durante meses sem receitas televisivas, sem receitas de patrocínios,
de bilheteira, de quotização, de merchandising?
Com que dinheiro continuarão a
pagar salários milionários a jogadores e treinadores?
E o que vai suceder a todo o
negócio que gira à volta do futebol: as estações desportivas de televisão, como
a SportTV, os programas desportivos que ocupavam praticamente todas as noites
dos canais de informação, os jornais desportivos etc.?
E toda esta gente – cameramen,
locutores, comentadores, jornalistas – vai fazer o quê?
E, de uma forma geral, as
pessoas ligadas à área do espetáculo como irão sobreviver?
Os cantores, os atores, os
bailarinos, os elementos das orquestras, os operadores de som e de luz…
E as gravações de telenovelas
vão continuar sabendo-se que abundam as cenas íntimas?
E todo o pessoal ligado às
viagens e ao turismo?
O comércio internacional vai
reduzir-se brutalmente; e as viagens de lazer, bem como os cruzeiros, foram
canceladas.
Como vão viver as pessoas
ligadas ao setor?
O pessoal das agências de
viagens, dos portos e aeroportos, as tripulações de barcos e aviões, os guias
turísticos, as empresas de catering?
E o que será do pessoal das
muitas fábricas que já pararam, seja por razões de segurança, por falta de
matérias-primas ou por que as encomendas não justificavam que se mantivessem em
laboração?
Enfim, é um mundo de questões
que de repente desaba sobre nós sem respostas à vista.
O leitor já percebeu que vai
haver uma vaga gigantesca de desemprego, que o Estado não terá condições para
suportar.
Não haverá dinheiro para pagar
tudo: aos desempregados, aos que vão para casa cuidar dos filhos, aos
reformados.
Com o desemprego, as receitas
do Estado diminuirão bruscamente – e, portanto, a capacidade do Governo para
cumprir os compromissos diminuirá na mesma medida.
Dificilmente não haverá fome…
É impossível neste momento
avaliar toda a extensão da catástrofe.
E não se pense que, quando o
vírus passar, tudo recomeçará a funcionar como por milagre.
Há muita empresa que faliu e
não voltará a abrir as portas.
Em todas as áreas.
Muita coisa recomeçará do
zero.
Por outro lado, os nossos
hábitos mudaram.
E instalou-se o medo – que
perdurará por muito tempo. Recorde-se a repulsa que os ratos ainda hoje causam,
vários séculos após as pestes.
No contacto humano, vamos ser
muito mais contidos.
Tão cedo não haverá beijinhos,
nem abraços, nem mesmo apertos de mão.
Tudo o que implique grandes
concentrações de gente – futebol, concertos, feiras, manifestações políticas,
celebrações religiosas – será evitado.
As relações sexuais
esporádicas e a prostituição levarão uma grande pancada.
A vida das famílias também vai
mudar.
O medo das aglomerações levará
muito mais crianças a ficar em casa até à idade escolar, obrigando um dos
membros da família a não trabalhar.
A xenofobia e o racismo
crescerão, pois tudo aquilo que nos é estranho passará a ser visto com
desconfiança. Note-se que as lojas chinesas foram as primeiras a fechar.
Qualquer oriental será olhado como potencial portador de um vírus esquisito.
As pessoas vão estar ainda
mais tempo ao computador e as redes sociais vão ter um incremento brutal.
Muita gente desenvolverá
doenças mentais, porque o isolamento potência esses problemas.
Mas nem tudo são más notícias.
Os canais de televisão informativos verão aumentar muito as audiências, embora
percam publicidade, porque ninguém agora anuncia nada.
As empresas de distribuição ao
domicílio também se desenvolverão bastante. Haverá que levar tudo a casa das
pessoas: comida, produtos de mercearia, jornais, eventualmente livros, filmes e
outros entretenimentos.
Os grandes hospitais darão
lugar a unidades menores e vulgarizar-se-á o internamento em casa.
O teletrabalho também sofrerá
um grande empurrão – e as empresas onde ele for agora implementado com sucesso
poderão adotá-lo em definitivo.
As crianças estarão mais tempo
com os pais em casa.
Além disso, a globalização
arrepiará caminho, o que para mim é uma vantagem.
A globalização globaliza o bem
e o mal.
Doenças que estão
circunscritas a determinadas regiões espalham-se rapidamente por todo o globo.
Já vimos isso com a gripe A
(H1N1), agora é o covid-19, amanhã será outra doença qualquer. Se não travarmos
a circulação descontrolada de pessoas, as pandemias serão cada vez mais
frequentes.
Reduzir-se-ão as viagens de
férias para destinos estranhos como o Vietname ou o Camboja.
As fronteiras tenderão a ser
mais vigiadas – e Schengen será uma memória progressivamente mais distante.
Com as limitações às viagens,
deixará de haver tanta circulação de mercadorias.
Parar-se-á um pouco o consumo
desenfreado – e, ao mesmo tempo, as produções brutais que nunca serão vendidas
e causam imensa poluição.
E, já agora, esfriará a
‘reunite aguda’, a mania das reuniões por tudo e por nada, que só causam perdas
de tempo.
Paradoxalmente, se não houver
uma travagem na globalização, a democracia poderá estar em risco, mesmo na
Europa.
Sentindo-se inseguras, as
pessoas começarão a desejar governos fortes, pulsos firmes, autoritários,
musculados.
E não há dúvida de que, em
momentos de aflição, as ditaduras funcionam melhor do que as democracias:
veja-se o modo como a China conseguiu dominar a doença, em circunstâncias
aparentemente muito mais desfavoráveis.
Enfim, muita coisa vai mudar.
O nosso modo de vida acabou.
Haverá um antes e um depois do
coronavírus.
Título e Texto: José
António Saraiva, SOL,
21-3-2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-