Aparecido Raimundo de Souza
PARA INÍCIO DE CONVERSA, apesar do que estava para acontecer, não houve clamores, nem brados nem
protestos ou gritos. Nem um ruído sequer se sustentou na aragem que soprava
amena vinda do infinito. Nada. Apenas a dor insuportável e intensamente
aflitiva, fustigando numa extenção medonha imprimiu-se por breve instante no néon dos olhos desdormidos.
A lua clara e transparente, num céu bonito e majestoso, não ia além de um alfanje inacessível e, se
não bastasse, uma cor de estrelas escorria pelas paredes, fazia uma poça enorme no chão de
terra batida e molhava o rosto que despencou, ao rítmo dos relâmpagos e trovões
de onde antes estivera. Fez frio. Um frio tremendo, hórrido, insuportável e
tétrico.
O vento não deixou por menos. Veio vindo, veio vindo, atravessou as
paredes, portas, desvãos e corredores sombrios e penetrou, incontinente, até o
sangue, nas testemunhas. Alguns dos pusilânimes e covardes se abarcaram aos
outros e temeram vinganças divinas; outros mais desgraçados e infames,
desembainharam as suas armas e, ainda assim, portavam mãos vazias, cheios de
espanto e medo, estupor e assombro, porque este é o meu Filho, “que será dado
por vós”.
O Que Antes Era Corpo, de onde a vida rastejou, impassível, para órbita
não fecundada, jazia na cissura de astros quando um cheiro a jasmins varreu
todo o âmbito e se pressentiu o Inexplimível. E o inefável, então se fez
aterradoramente abissal.
O falecido – e nunca, em toda a sua inesistência tivera chance de não
sê-lo -, o cadáver inerte se levantou ao terceiro dia e, apontando o dedo para
a culpa delituosa de cada um, dedicou-nos suas veias abertas, suas chagas e
feridas e a serena lucidez que agora, por direito, adquiria.
Se possuísse nome, casa, emprego, profissão, cpf, identidade, título de eleitor e certificado de alistamento militar, poderia até não ter sido condenado, mas seu destino, de qualquer modo, não deixaria de ser o de acusado: desde sempre, todos os dias, fora açoitado, Morto, esquartejado em sua realeza um pouco de cada vez.
Por temer a amplidão, tomaram-no como louco e o encerraram em cela escura. Inquietou a
ablepsia e tanto que lhe nasceram luzes efêmeras em lugar dos olhos, até que elas também lhe
foram literalmente proibidas.
Perdeu com isso o peso de dois mundos e
passou a flutuar. Confundiram-no com nuvens e exigiram que parasse de
divagar. Chorava, chorava muito, derramava lágrimas além do normal, quando o
algemaram: “Por favor, tirem essas correntes dos meus pés”.
Não lhe obedeceram. Nem podiam. Antes, alguns trouxeram uma âncora, que
lhe fora outorgada por força de lei, de forma que se tornasse raiz e, como tal,
para júbilo da nação adormecida, vivesse a sua pena capital num lentamente
calamitoso. Como uma passagem para o desconhecido, em câmera lenta, a passos
poucos Ele se foi. Até que outros... Até que outros venham tomar seu
lugar.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, Espírito Santo. 19-5-2020
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