A identidade europeia foi desgraçadamente
reduzida a versões ideológicas de palavras como diversidade, tolerância,
respeito
Bruno Garschagen
Vítima de assédio moral pela
família de imigrantes paquistaneses que a obrigaram a um casamento arranjado,
uma jovem muçulmana de 16 anos, cujo sonho era cursar literatura inglesa numa
universidade, começou a urinar regularmente na cama. Outra jovem de origem
familiar paquistanesa, vítima de casamento arranjado e da violência do marido
desde a noite de núpcias, tentou se enforcar. Uma terceira jovem, filha de pais
indianos, foi mantida fora da escola a partir dos 11 anos de idade para não ser
contaminada com ideias ocidentais. Aos 15, ela foi levada para a Índia e
forçada a se casar com um primo de 16 anos que havia sido criado na mesma casa
como se fosse seu irmão. Ao negar-se a fazê-lo, a adolescente foi brutalmente
espancada pelo pai e teve o maxilar fraturado. A única maneira de convencer a
adolescente a aceitar o casamento com o primo-irmão foi o pai ameaçar
divorciar-se da mãe e expulsá-la de casa.
Esses casos abomináveis,
dentre tantos outros descritos pelo psiquiatra inglês e colunista da
Revista Oeste Anthony Daniels (Theodore Dalrymple) em seu
livro A Vida na Sarjeta, aconteceram na Inglaterra na década de
1990 sob a completa ignorância ou complacência de políticos e de autoridades do
país. Aqueles imigrantes que tentam reproduzir no país que os acolheu costumes
que são inaceitáveis e passíveis de punição numa democracia liberal contam com
o apoio imoral dos multiculturalistas e com a passividade da polícia, que teme
ser acusada de racismo ou xenofobia. Na dúvida, prefere não agir.
Assim tem sido, inclusive, com
casos infames de tráfico sexual de crianças e de estupros em série praticados
por gangues de muçulmanos: as investigações e prisões só ocorrem quando não há
mais como fingir, a história vaza e escandaliza a sociedade.
A imigração em massa combinada
com a falta de uma política que exija contrapartidas dos estrangeiros, coisas
óbvias como aprender o idioma e adaptar-se à cultura do país, parecem ter
transmitido a uma parcela dos imigrantes a mensagem de que pode fazer no país
que não é o deles tudo aquilo que fazia em seu país — e do qual fugiram por
alguma razão.
E, enquanto os
multiculturalistas reduzem o problema da imigração em massa à diversidade
cultural e a quão boa a imigração é para a economia, garantem um salvo-conduto
a todos aqueles que decidem abusar do privilégio de viver num país como a
Inglaterra.
Se o próprio país
não exige uma adaptação cultural mínima, não será o imigrante criminoso a
fazê-lo.
O problema, diga-se, não se
restringe à Inglaterra. Vários países europeus vêm enfrentando problemas de
adaptação e alta de criminalidade cometida por estrangeiros, principalmente
depois da crise migratória ocorrida em 2015. Políticos como Angela Merkel não
só não souberam como lidar com a questão, mas agravaram-na em seus respectivos
países, abrindo espaço para políticos populistas como o italiano Matteo
Salvini.
No passado e no presente,
aqueles corajosos que ousam pôr o assunto em tema são acusados das piores
heresias. Em 1968, Enoch Powell fez um discurso apontando as consequências
negativas do descontrole do fluxo imigratório para o Reino Unido, desde
problemas culturais aos infraestruturais (escolas, hospitais etc.). Sua
carreira política ascendente caiu em desgraça por covardia da elite do Partido
Conservador à época liderado pelo esquecível Edward Heath.
A intervenção de Powell foi
usada como justificativa para inviabilizar por décadas o enfrentamento do
problema. E qualquer tentativa era rechaçada sob a acusação de xenofobia.
Outra vítima do consenso
compulsório foi Ray Honeyford. Diretor de uma escola em Bradford cuja
maioria dos estudantes era filha de imigrantes, Honeyford ousou escrever em
1984 um artigo para a revista The Salisbury Review, à época
dirigida por Roger Scruton. No texto, ele descrevia as atitudes dos pais
imigrantes em relação a seus filhos, como proibi-los de participar de aulas de
esporte, teatro, dança. Também defendia a ideia de que os alunos aprendessem e
falassem o inglês, e que aprendessem e compreendessem a cultura da Inglaterra.
O texto lhe custou o emprego e a carreira.
Os poucos críticos
das consequências da imigração em massa eram calados, e as fronteiras,
arreganhadas.
É justamente a imigração em
massa, mais a perda de fé dos europeus em suas crenças, tradições e
legitimidade, a fonte de uma questão que, para alguns autores, parece
irreversível: a extinção da Europa tal qual a conhecemos.
Para agravar a situação, e ser
pessimista em sua capacidade de resistir e sobreviver, “a Europa de hoje não
tem a mais pequena vontade de se reproduzir, de lutar por si mesma ou de sequer
tomar partido numa discussão. […] Hoje, mais do que qualquer outro continente
ou cultura no mundo, a Europa está profundamente vergada ao peso da culpa pelo
seu passado”.
Esse diagnóstico sombrio, que
parte da afirmação segundo a qual a Europa está a suicidar-se, foi formulado
pelo jornalista inglês Douglas Murray em seu altamente recomendável livro A
Estranha Morte da Europa. O livro foi publicado em 2017 na Inglaterra, teve
uma edição lançada em Portugal em 2018 e merecia tradução no Brasil. Já como
sinal dos tempos, a versão portuguesa alterou o subtítulo: o original
“imigração, identidade e islã” foi modificado para “imigração, identidade e
religião”.
Ao asseverar que os líderes
europeus é que decidiram suicidar-se (ou promover um suicídio assistido),
Murray está apontando para o fim da civilização construída pelos europeus e
que, por isso, “os povos da Europa terão perdido o único lugar do mundo a que” podiam
“chamar de casa”. Esse amor pelo lar e pelas pessoas que nele residem,
sentimento definido pelo filósofo Roger Scruton como oikophilia, é
que nos permite reconhecer como casa aquilo que nos é familiar.
A oikophilia nos
desperta o senso de pertencimento e de proteção contra os instintos destrutivos
de quem quer que seja.
A casa do europeu não é só o
território definido por fronteiras, segundo Murray. Porque ser europeu é
compartilhar uma cultura, um conjunto de valores, inclusive religiosos. E é
precisamente uma cultura “forte e assertiva”, ao contrário de “uma cultura
culpada, exausta e moribunda”, que é capaz de suportar a pressão da chegada em
massa de determinados estrangeiros que se recusam a respeitar o (e a ser gratos
ao) país de acolhimento.
Longe de ser uma diatribe
histérica contra a imigração ou contra os imigrantes, o livro de Murray
reconhece sua importância, mas chama a atenção para um problema urgente: a
antiga identidade europeia, calcada em fundamentos filosóficos e históricos
profundos, foi desgraçadamente reduzida à aplicação de versões ideológicas de
palavras como diversidade, tolerância, respeito, com resultados sociais
desastrosos.
E para onde essa questão não
debatida nem resolvida conduzirá a Europa? Para Murray, “essas autodefinições
superficiais (diversidade, tolerância, respeito) podem sustentar-nos [os
europeus] durante mais alguns anos, mas não têm qualquer hipótese de ser
capazes de convocar as lealdades mais fundas que as sociedades têm de ser
capazes de alcançar se querem sobreviver por muito tempo”. Dessa maneira, “esta
é apenas uma razão pela qual é provável que a nossa cultura europeia, que durou
todos estes séculos e partilhou com o mundo tais cumes da realização humana,
não sobreviva”. Cultura europeia da qual, nós, brasileiros, somos filhos.
Agora resta saber se a
pandemia do novo coronavírus será capaz de provocar ou não mudanças no debate e
no cenário, pois, como apontou Scruton em seu livro Como Ser um
Conservador, “o trabalho de destruição é rápido, fácil e recreativo; o
labor da criação é lento, árduo e maçante”.
Porque, permanecendo as coisas
como estão, veremos, como no célebre verso de Os Homens Ocos, de T.
S. Eliot, a Europa expirar, não com uma explosão, mas com um lamento.
Título e Texto: Bruno
Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no
Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e
autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres
Mínimos (Editora Record). Revista Oeste, nº 7,
8-5-2020
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