quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Reinaldo Azevedo responde a Caetano Veloso

Caetano, quer dançar comigo?

Caetano Veloso citou o blog em sua coluna no Globo de domingo. E o fez pela terceira semana seguida: explicitamente nesta e na retrasada, de modo indireto na anterior, quando escreveu sobre o pensamento de Mangabeira Unger, respondendo a uma crítica deste blogueiro. Não! Não estou tirando Caetano para dançar. O título é só pra chamar a atenção.  Ao contrário: aprecio a idéia de que estamos nos hostilizando um tantinho, cada um num canto do salão. Ele gosta de “briga”, o que acho bom. Eu também. Detesto essa conversa de conciliação. Quando alguém propõe frente ampla, costumo perguntar: “Se estamos todos juntos, contra quem vamos lutar?”
Confronto? Sou como os marxistas? Acredito que a luta de classes move a história e traz a semente do futuro? Eu não! Desde, deixe-me ver, os 21 anos — estou com 49 —, acho que é a história contada por vigaristas intelectuais a mover a luta de classes, reduzida a meros estratagemas de conquista do poder com o intuito de seqüestrar prerrogativas da democracia, transferindo-as aos “donos do povo”, que passam a falar por nós. Fui trotskista, confesso, ainda na minha primeira pelagem. Quem me convenceu do horror daquele pensamento não foi nenhum direitista, mas Lênin, cuja obra decidi ler de modo obsessivo num determinado momento da juventude. Cumpridos uns 20% da jornada, constatei que ele pouco estava se importando com tudo o que eu compreendia — ou que a civilização compreende — por justiça, liberdade ou mesmo igualdade.

O grande inimigo de Lênin era a democracia, que continua a ser a grande inimiga das esquerdas ainda hoje, na fase em que é patrocinada por bancos e conglomerados industriais, assumindo máscaras as mais diversas: ecologia, racialismo, confrontos de gênero, regionalismos etc. Feita aquela constatação no começo da jornada, o resto da trajetória serviu para que eu tivesse a certeza: “Eu detesto isso aqui”. Ficou claro para mim: a diferença entre o fascismo e o comunismo era só de perspectiva, não de objetivos. Para ambos, as divergências são só uma etapa primitiva da construção da uma totalidade, que, num caso, se revela no estado integral e, no outro, no partido.
Nesse particular ao menos, eu era mais nietzschiano. Eu acredito numa certa ética do guerreiro, que não vislumbra a eliminação do outro, mas o duelo permanente. Indivíduos existem para o embate. A história não é feita de eliminações, mas de acúmulos. No tempo em que me ocupava de Lênin, eu já havia lido a formidável biografia de Trotsky, de Isaac Deutscher, e me lembrava da visita que o jovem revolucionário fizera ao líder mais maduro, em Londres. Ambos saíram para passear, e Lênin mostrava os monumentos da cidade ao visitante dizendo: “Esta é a catedral deles, esta é a ponte deles…” “Eles” eram os burgueses. Um tanto envergonhado, ainda moço, pensei: “Este Lênin é uma besta”. Lendo depois a sua obra, confirmei: “Este Lênin é uma besta-fera”. As catedrais são nossas. As pontes são nossas.
Na coluna da semana passada, Caetano cita em tom depreciativo a obra do detestável filósofo Slavoj Zizeck, esloveno de nascimento. É um pensador contemporâneo (só mesmo no tempo) que, na prática, justifica o terrorismo como expressão moderna daquelas velhas contradições que as esquerdas acreditam mover a história. Devo ter sido o primeiro a dar uns pontapés neste senhor aqui no Brasil. Vai ver o meu pontapé não vale porque, afinal, Caetano já sugeriu que me alinho com a direita carola  e com as “marchadeiras de 1964″. Vai ver o fato de eu rezar o Pai-Nosso todos os dias me inabilita para combater um teórico do terror. Bem, em 1964, eu tinha três anos. Em 1976, aos 15, estava enfrentando problemas com um agente da ditadura infiltrado no colégio em que eu estudava…
Não estou aqui a exibir credenciais de esquerda para que não me confundam. Eu não estou nem aí para o que pensam a meu respeito. Os meus inimigos são os inimigos do regime democrático, pouco importa a fantasia de bons propósitos que eles enverguem. Imaginem se o demônio mostrasse sempre a sua cara feia, não é? Ninguém cairia no conto do rabudo. Peguemos um caso momentoso: querem rever a Lei da Anistia no Brasil em nome da Justiça? Pois bem: se é (e eu não acho que seja o caso) para ignorar a essência de um processo de anistia — que é um perdão concedido a crimes políticos (que assumem as feições mais diversas), não uma absolvição —, que o façamos, então, sem critério seletivo. Vamos “reencruar” a história para que todos os facínoras paguem por seus crimes. Vamos viver o esplendor de nossos conflitos de três décadas atrás! Ou toquemos a vida adiante , agarrando-nos às conquistas do estado de direito, que não faz a lei retroagir para punir inimigos. Penso assim porque sou de direita e me alinho com os militares? Penso assim porque sou lógico.
Volto a Caetano depois da digressão.
Eu fui o primeiro a protestar contra os jabutis em cima da árvore de Chico Buarque. E não porque ele é um bibelô das esquerdas, mas porque é um mau romancista. Expus aqui os meus motivos, apontando a sua falta de intimidade com a prosa, o que, a meu juízo, impede que seja distinguido como… um prosador! Caetano, no fim das contas, pede que eu respeite um ídolo da cultura popular brasileira, apelando — ele, não eu — a elementos que são externos à obra. Tanto é assim que o colunista se esqueceu de dizer por que os livros de Chico Buarque são bons. Acredito que isso faça parte de suas sutilezas…
Gosto de fazer os meus vermelhos-e-azuis, respondendo a textos trecho a trecho. Marcelo Coelho, da Folha, me acusou de arrogante ou policialesco certa feita por proceder assim. Errado. É uma questão de respeito ao autor que contesto. Estou cansado de ler coisas que jamais escrevi, mas que me são atribuídas. Gosto que o leitor tenha acesso ao original para poder se precaver também dos meus eventuais erros de leitura. O Globo não permite que se faça cópia do texto. Se Caetano quiser, pode enviar para a área de comentários. Facilita.
Vou parando por aqui — este texto, não a batalha. De tal sorte se tem criminalizado a divergência no Brasil — e o ambiente anda tão hostil ao debate — que, se querem saber, acho positivo que Caetano Veloso também tente agitar o marasmo. Num país sem oposição, por que um blogueiro e um compositor não podem se estapear um pouco, desafinando o coro dos contentes?
No que concerne a idéias, estamos no fundo do poço. As diatribes de Caetano e as minhas lixam o céu seco. Quem sabe a gente dê algumas esperanças às almas esticadas no curtume.
Reinaldo Azevedo
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