domingo, 12 de dezembro de 2010

Tudo o que precisamos é de amor (e de um 'Rolls Royce')

John Lennon ensaiando "Give Peace A Chance", 1969, foto: Roy Kerwood (CC)

Permitam-me confessar relativo interesse por John Lennon. É um interesse perverso, pois foca-se numa singular característica do homem: o seu genuíno entusiasmo por cada disparate popular na época em que viveu. "Misticismo" oriental? Confere. "Pacifismo"? Confere. Terrorismo? Confere. Guerrilha? Confere. Drogas enquanto meio de "expansão" da "consciência"? Confere. Maoísmo? Confere. "Black Power"? Confere. "Flower Power"? Confere. "Nova Esquerda"? Confere. Marxismo latino? Confere. Instalações, performances e manifestações "experimentais" afins? Confere. Terapias psicológicas de "vanguarda"? Confere. Etc.? Confere.
Com todo o respeito, Lennon foi uma esponja empenhada em absorver todo o lixo em seu redor ou, para os eruditos, o Bouvard e o Pécuchet que a década de 1960 mereceu. Ao contrário das personagens de Flaubert, porém, Lennon não acabou perseguido pelos aldeões, mas idolatrado por eles. Acredite- -se ou não, nas últimas quatro décadas produziu-se uma quantidade incomensurável de artigos dedicados ao "pensamento" da criatura e pouquíssimos artigos dedicados à evidência de que a criatura não pensava por aí além.

Para fins recreativos, eu consumo tudo. Não conheço nada mais divertido do que autopsiar o cérebro de quem pedia um mundo sem propriedade privada a partir de uma das suas diversas mansões. O contraste entre o despojamento que pedia aos outros e o Rolls ou a suite no Hilton de que não abdicava não fez de Lennon um caso único, mas ergueu-o de facto ao estatuto de símbolo, embora não o símbolo de lucidez que alguns supõem.
Nos trinta anos da sua morte, a imprensa entreteve-se a especular sobre o que teria acontecido a Lennon sem os tiros de um fã (naturalmente) maluco. Li algures que Yoko Ono não duvida que Lennon apreciaria hip-hop. Também não duvido: hip-hop, teses do "aquecimento global", teorias da conspiração, Palestina, Hugo Chávez, Michael Moore, talibãs e o que calhasse. Nada sugere que a reclusão anterior aos últimos disco e suspiro tivesse diminuído a atracção de Lennon por cada patranha em voga.
Aliás, a sua curta vida esteve tão preenchida por patranhas que é legítimo esquecermo-nos de que, segundo os estreitos padrões do pop, Lennon era músico. Quanto a isso, porém, não há muito a dizer. Removidas a alegria desmiolada dos Beatles iniciais e três ou quatro canções decentes dos Beatles "sérios" (Julia ou Rain, por exemplo; os candidatos a standards ficaram a cargo de Paul McCartney), não sobrou grande coisa excepto a memória de um cliché ambulante. Ambulante até 8 de Dezembro de 1980, claro.
Alberto Gonçalves, Diário de Notícias

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