Ativistas no mundo árabe
competem para definir o que é um estado islâmico
Anthony Shadid e David D. Kirkpatrick
Poucos questionam a sucesso
eleitoral de ativistas religiosos que virá, mas à medida que surgem das sombras
de uma luta longa e às vezes sangrenta com governos autoritários e
ostensivamente seculares, eles estão enfrentando questões recentemente
levantadas e urgentes sobre como aplicar os preceitos islâmicos em sociedades
mais abertas, com necessidades muito reais.
Na Turquia e na Tunísia, os
partidos culturalmente conservadores quanto aos princípios islâmicos estão
rejeitando a denominação "islamita", para qualificar o que eles acham
que deva ser uma visão mais democrática e tolerante. No Egito, um impulso
semelhante começou a rachar a ‘Irmandade Muçulmana’ – com um número crescente
de políticos e partidos defendendo um modelo inspirado pela Turquia – onde, um
partido com raízes no Islã político tem prosperado num sistema até então
persuasivamente secular. Alguns alegam que a monarquia absoluta e puritana da
Arábia Saudita, na verdade, viola a ‘lei islâmica’.
Veio uma reação em seguida, com os tradicionalistas também flertando com as idéias islâmicas mais conformes com a atualidade, como a imposição de serviços bancários sem juros e impostos religiosos obrigatórios e censura de discursos não religiosos. Os debates são profundos o suficiente para que muitas pessoas na região acreditem que a luta mais importante já não pode ocorrer entre islamitas e secularistas, mas sim entre os próprios muçulmanos, opondo os mais puritanos contra os mais liberais. "Essa é a luta do futuro", disse Azzam Tamimi, um estudioso e autor de uma biografia de um tunisino islâmico, Rachid Ghannouchi (foto abaixo), cujo partido, chamado ENNAHDA, é o favorito das eleições do próximo mês para escolher uma Assembléia Constituinte. "A verdadeira luta do futuro será a respeito de quem é capaz de cumprir os desejos de um público devoto. Vai ser sobre quem é islâmico e que é mais islâmico, mais do que sobre os que defendem um estado secular e um estado religioso islâmico".
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Rachid Ghannouchi lidera um ‘partido islâmico’ na Tunísia. Foto: Zoubeir Souissi/Reuters |
"É a hora da
virada", disse Emad Shahin, um estudioso da política de da lei islâmica na
Universidade de Notre Dame, que estava no Cairo.
No centro dos debates está uma
nova geração de políticos que têm surgido do meio clerical islâmico, mas que
aceita um estado essencialmente secular, uma corrente que alguns estudiosos já
usam para identificá-los como "pós-islamitas". Entre seus mais
destacados próceres estão o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan do Partido
da Justiça e Desenvolvimento, na Turquia, de quem os intelectuais falam como
tendo uma experiência compartilhada e uma herança comum com alguns dos membros
mais jovens da ‘Irmandade Muçulmana’ no Egito e com o Partido ENNAHDA na
Tunísia. Como a Turquia, a Tunísia enfrentou décadas de uma laicidade forçada
pelo estado, que nunca se reconciliou inteiramente com a população
conservadora.
"Eles se sentem
reciprocamente à vontade", disse Cengiz Çandar, um colunista turco de
língua árabe. "São termos de referência similares, e eles podem se
comunicar facilmente entre si". O
Sr. Ghannouchi, o islamita tunisino, sugeriu adotarem uma ambição comum, ao
propor o que alguns dizem que partido de Erdogan conseguiu alcançar: um
próspero e democrático estado muçulmano, liderado por um partido que é
profundamente religioso, mas que opera dentro de um sistema que supostamente
protege as liberdades individuais (essa é, pelo menos, a noção que os críticos
de Erdogan usam para acusá-lo de um viés pronunciado de autoritarismo).
"Se o espectro islâmico
se estende de Bin Laden a Erdogan, qual deles é o Islã?". Num debate
recente com um crítico secular, o Sr Ghannouhi perguntou: "Por que nós
colocamos no mesmo lugar – como se um modelo fosse, mas que está longe de ser o
nosso pensamento – o Talibã ou o modelo Saudita, enquanto que há outros modelos
bem sucedidos e islâmicos que estão perto de nós, como o modelo turco, o malaio
e o da Indonésia, que combinam o Islã e a modernidade”?
A noção de um pós-islamismo
árabe não está confinada à Tunísia. Na Líbia, Ali Sallabi, o mais importante
líder político islâmico, cita o Sr. Ghannouchi como uma grande influência.
Abdel Moneim Abou el-Fotouh, um ex-líder da ‘Irmandade Islâmica’ que está
concorrendo à presidência do Egito, juntou-se a vários novos partidos políticos
separatistas com o argumento de que o estado deve evitar interpretar ou aplicar
a lei islâmica, para regular os impostos religiosos ou barrar uma pessoa de
concorrer à presidência com base no gênero ou na religião.
Um partido formado por três
líderes da ala jovem da Irmandade diz que, enquanto o Egito compartilhar uma
cultura comum árabe e islâmica com a região, seu sistema político emergente
deve garantir a proteção das liberdades individuais de forma tão robusto quanto
como ocorre no Ocidente. Numa entrevista, um deles, Islam Lofty, argumentou que
o reino estritamente religioso da Arábia Saudita, onde o Corão é ostensivamente
a Constituição, foi menos islâmico do que a Turquia. "Não é islâmico, é
uma ditadura", disse Lofty, que foi recentemente expulso da Fraternidade
por iniciar a formação de um novo partido.
O Partido Centro do Egito, um
grupo que lutou durante 16 anos para conseguir uma licença de funcionamento do
governo deposto, pode ir mais longe, aqui, na elaboração da noção de
pós-islamismo. Seu fundador, Abul-Ela Madi, de há muito procurado para mediar o
debate entre as forças religiosas e liberais, veio no mês passado exercer o seu
papel, mesmo lidando com um conjunto de princípios comuns a ambos os lados.
Como o Partido ENNAHBA da Tunísia, ele nega o termo "islamita", e
como outros progressistas e ativistas islâmicos, ele descreve seu grupo como
sendo o equivalente mais próximo, no Egito, do partido de Erdogan, na Turquia.
"Não somos nem totalmente seculares, nem totalmente islâmicos", disse
ele. "Somos o meio termo".
É o que se ouve com
frequência, na Turquia, sobre o sistema político do país, até recentemente
dominado pelos militares (uma corrente moderadamente islâmica lá). O Sr. Loft
disse que espera que os islâmicos egípcios possam passar por uma evolução
parecida com a dos turcos, com base nas eleições, embora os ativistas tenham
recomendado cuidado ao fazer comparações muito próximas. “Eles foram para as
ruas e aprenderam que o público não estava preocupado como o ‘hijab’ – o véu
usado pelas mulheres – mas com a corrupção”, disse ele. Se todas as mulheres
usassem o ‘hijab’, a Turquia não seria definitivamente uma grande nação. A
diversidade de crença e de atitude cívica é o que leva um país ao
desenvolvimento político e econômico, e, pois, social”.
Comparado com a situação na
Turquia, o que está em jogo nos debates no Egito pode ser da maior
significância para todo o mundo árabe, onde as correntes liberais estão ainda
fracas e divididas, pelo menos anteriormente à organização e popularidade dos
ativistas islâmicos. Na Síria, caso a ditadura de Bashar AL-Assad caia, os
debates estarão envoltos em ira com relação à possibilidade de se estabelecer
um estado civil laico ou islâmico. A emergência, no Egito, na Tunísia e na
Síria, dos salafistas * – a corrente mais inflexível entre as que querem um
estado islâmico radical – é um dos desdobramentos políticos mais notáveis
nessas sociedades (“o Corão é a nossa Constituição”, como costumam dizer). Tal
corrente – a mais poderosa no Egito e ainda representada pela Irmandade
Islâmica – tem resistido obstinadamente a algumas mudanças do discurso
muçulmano.
Quando o Sr. Erdogan expressou
sua esperança em "um estado secular no Egito", que significa,
explicou, um estado equidistante de todas as crenças, os líderes da Irmandade
imediatamente atacaram-no, dizendo que a Turquia de Erdogan não serve de modelo
algum, nem para o Egito nem para os seus islamitas.
Um porta-voz da Irmandade,
Mahmoud Ghozlan, acusou a Turquia de violar a lei islâmica ou deixar de
criminalizar o adultério. “Num sistema secular, isto é aceito, e as leis
protegem o adúltero”, disse ele, “mas, pela ‘Shariah’ isto é um crime”.
Recentemente, em 2007, um
protótipo de plataforma da Irmandade barrava as mulheres e os cristãos em
servir como presidente do Egito e convocou um conselho de escolásticos
religiosos para aconselhar sobre a conformidade de qualquer legislação com a
lei islâmica. O grupo nunca repudiou o documento. Sua retórica de longa
tolerância do Islã com as minorias quase sempre soa como uma condescendência à
minoria cristã do Egito, que quer ser respeitada por uma cidadania igual, e não
por proteções especiais. O novo partido da Irmandade Muçulmana tem apelado para
que se crie uma sobretaxa especial aos muçulmanos para estimular as doações
caritativas. De fato, o Sr. Tamimi, o escolástico, argumentou que alguns grupos
majoritários, como a Irmandade, estavam sentindo o empuxo de suas crescentes
ações assertivas conservadoras, que ainda apelam sem cessar por uma censura
religiosa e por um sistema bancário isento de juros.
“É a democracia a voz da
maioria?”, perguntou Mohammed Nadi, um estudante de 26 anos, num recente protesto
salafista no Cairo. “Nós, como islâmicos, somos a maioria. Por que querem eles
nos impor as opiniões de minorias — os liberais e os secularistas? Isto é tudo
o que eu quero saber”.
Texto: Anthony Shadid e David D. Kirkpatrick,
The New York Times, 28-09-2011
Tradução: Francisco Vianna
* O salafismo (do árabe: salafī, "predecessores" ou
"primeiras gerações") é um movimento reformista islâmico que
surgiu no Egito
no final do século XIX dentro do que podemos referir como período
de renascimento cultural árabe. O objetivo primário do movimento era
reformar a doutrina islâmica de forma a adaptá-la aos novos tempos, foi um
produto do intenso contacto que começou, desde os inícios do século
XIX, entre o mundo islâmico e o mundo ocidental e pretendia chamar a
atenção para uma via de desenvolvimento especificamente islâmica. Este
movimento não se colocava somente contra doutrinas que estabeleciam uma
identificação entre a modernização e a ocidentalização dos costumes culturais e
sociais islâmicos de então (cujo exemplo mais notável pode ser apontado como o
que se passou na Turquia,
com a laicização
do estado através do movimento dos Jovens Turcos, fundado por Kemal
Atatürk), como também é contra o tradicionalismo mais fechado que abafa
toda e qualquer modernidade procedente das influências ocidentais
como algo que destrói tudo o que é islâmico. Saiba mais CLICANDO AQUI
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