segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O dilema dos árabes entre o laicismo de uma democracia e o autoritarismo de uma ditadura religiosa

Ativistas no mundo árabe competem para definir o que é um estado islâmico
Anthony Shadid e David D. Kirkpatrick

Ali Sallabi, à esquerda, um líbio (foto: Moises Saman/NYT), e Abdel Moneim Abou el-Fotouh, um egípcio
(foto: Khaled Desouki/AFP/Getty Images), dizem que seus estados deveriam fundir o islamismo com a modernidade
Por força das revoltas e revoluções árabes deste ano, os ativistas que estão marchando sob a bandeira do Islã estão na iminência de chegarem a um consenso tentado por décadas: a perspectiva de conseguir chegar ao poder de forma decisiva em toda a região ao desencadear um debate sem precedentes sobre o caráter das ordens políticas que estão emergindo e que estão ajudando a construir.

Poucos questionam a sucesso eleitoral de ativistas religiosos que virá, mas à medida que surgem das sombras de uma luta longa e às vezes sangrenta com governos autoritários e ostensivamente seculares, eles estão enfrentando questões recentemente levantadas e urgentes sobre como aplicar os preceitos islâmicos em sociedades mais abertas, com necessidades muito reais.

Na Turquia e na Tunísia, os partidos culturalmente conservadores quanto aos princípios islâmicos estão rejeitando a denominação "islamita", para qualificar o que eles acham que deva ser uma visão mais democrática e tolerante. No Egito, um impulso semelhante começou a rachar a ‘Irmandade Muçulmana’ – com um número crescente de políticos e partidos defendendo um modelo inspirado pela Turquia – onde, um partido com raízes no Islã político tem prosperado num sistema até então persuasivamente secular. Alguns alegam que a monarquia absoluta e puritana da Arábia Saudita, na verdade, viola a ‘lei islâmica’.

Veio uma reação em seguida, com os tradicionalistas também flertando com as idéias islâmicas mais conformes com a atualidade, como a imposição de serviços bancários sem juros e impostos religiosos obrigatórios e censura de discursos não religiosos. Os debates são profundos o suficiente para que muitas pessoas na região acreditem que a luta mais importante já não pode ocorrer entre islamitas e secularistas, mas sim entre os próprios muçulmanos, opondo os mais puritanos contra os mais liberais. "Essa é a luta do futuro", disse Azzam Tamimi, um estudioso e autor de uma biografia de um tunisino islâmico, Rachid Ghannouchi (foto abaixo), cujo partido, chamado ENNAHDA, é o favorito das eleições do próximo mês para escolher uma Assembléia Constituinte. "A verdadeira luta do futuro será a respeito de quem é capaz de cumprir os desejos de um público devoto. Vai ser sobre quem é islâmico e que é mais islâmico, mais do que sobre os que defendem um estado secular e um estado religioso islâmico".

Rachid Ghannouchi lidera um ‘partido islâmico’ na Tunísia. Foto: Zoubeir Souissi/Reuters
O momento é tão dramático como qualquer outro nas últimas décadas no mundo árabe, como autocracias a desmoronar e, de repente, partidos vibrantes começam a construir uma nova ordem, começando com as eleições na Tunísia, em outubro agora, depois o Egito, em novembro. Embora a região tenha testemunhado exemplos de empreendimentos por islâmicos na política, as eleições no Egito e na Tunísia, as tentativas na Líbia de construir um estado quase a partir do zero, e a formação de uma alternativa à ditadura na Síria são sua entrada mais forçosa já feita por um corpo político embrionário da região.

"É a hora da virada", disse Emad Shahin, um estudioso da política de da lei islâmica na Universidade de Notre Dame, que estava no Cairo.

No centro dos debates está uma nova geração de políticos que têm surgido do meio clerical islâmico, mas que aceita um estado essencialmente secular, uma corrente que alguns estudiosos já usam para identificá-los como "pós-islamitas". Entre seus mais destacados próceres estão o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan do Partido da Justiça e Desenvolvimento, na Turquia, de quem os intelectuais falam como tendo uma experiência compartilhada e uma herança comum com alguns dos membros mais jovens da ‘Irmandade Muçulmana’ no Egito e com o Partido ENNAHDA na Tunísia. Como a Turquia, a Tunísia enfrentou décadas de uma laicidade forçada pelo estado, que nunca se reconciliou inteiramente com a população conservadora.

"Eles se sentem reciprocamente à vontade", disse Cengiz Çandar, um colunista turco de língua árabe. "São termos de referência similares, e eles podem se comunicar facilmente entre si".  O Sr. Ghannouchi, o islamita tunisino, sugeriu adotarem uma ambição comum, ao propor o que alguns dizem que partido de Erdogan conseguiu alcançar: um próspero e democrático estado muçulmano, liderado por um partido que é profundamente religioso, mas que opera dentro de um sistema que supostamente protege as liberdades individuais (essa é, pelo menos, a noção que os críticos de Erdogan usam para acusá-lo de um viés pronunciado de autoritarismo).

"Se o espectro islâmico se estende de Bin Laden a Erdogan, qual deles é o Islã?". Num debate recente com um crítico secular, o Sr Ghannouhi perguntou: "Por que nós colocamos no mesmo lugar – como se um modelo fosse, mas que está longe de ser o nosso pensamento – o Talibã ou o modelo Saudita, enquanto que há outros modelos bem sucedidos e islâmicos que estão perto de nós, como o modelo turco, o malaio e o da Indonésia, que combinam o Islã e a modernidade”?

A noção de um pós-islamismo árabe não está confinada à Tunísia. Na Líbia, Ali Sallabi, o mais importante líder político islâmico, cita o Sr. Ghannouchi como uma grande influência. Abdel Moneim Abou el-Fotouh, um ex-líder da ‘Irmandade Islâmica’ que está concorrendo à presidência do Egito, juntou-se a vários novos partidos políticos separatistas com o argumento de que o estado deve evitar interpretar ou aplicar a lei islâmica, para regular os impostos religiosos ou barrar uma pessoa de concorrer à presidência com base no gênero ou na religião.

Um partido formado por três líderes da ala jovem da Irmandade diz que, enquanto o Egito compartilhar uma cultura comum árabe e islâmica com a região, seu sistema político emergente deve garantir a proteção das liberdades individuais de forma tão robusto quanto como ocorre no Ocidente. Numa entrevista, um deles, Islam Lofty, argumentou que o reino estritamente religioso da Arábia Saudita, onde o Corão é ostensivamente a Constituição, foi menos islâmico do que a Turquia. "Não é islâmico, é uma ditadura", disse Lofty, que foi recentemente expulso da Fraternidade por iniciar a formação de um novo partido.

O Partido Centro do Egito, um grupo que lutou durante 16 anos para conseguir uma licença de funcionamento do governo deposto, pode ir mais longe, aqui, na elaboração da noção de pós-islamismo. Seu fundador, Abul-Ela Madi, de há muito procurado para mediar o debate entre as forças religiosas e liberais, veio no mês passado exercer o seu papel, mesmo lidando com um conjunto de princípios comuns a ambos os lados. Como o Partido ENNAHBA da Tunísia, ele nega o termo "islamita", e como outros progressistas e ativistas islâmicos, ele descreve seu grupo como sendo o equivalente mais próximo, no Egito, do partido de Erdogan, na Turquia. "Não somos nem totalmente seculares, nem totalmente islâmicos", disse ele. "Somos o meio termo".

É o que se ouve com frequência, na Turquia, sobre o sistema político do país, até recentemente dominado pelos militares (uma corrente moderadamente islâmica lá). O Sr. Loft disse que espera que os islâmicos egípcios possam passar por uma evolução parecida com a dos turcos, com base nas eleições, embora os ativistas tenham recomendado cuidado ao fazer comparações muito próximas. “Eles foram para as ruas e aprenderam que o público não estava preocupado como o ‘hijab’ – o véu usado pelas mulheres – mas com a corrupção”, disse ele. Se todas as mulheres usassem o ‘hijab’, a Turquia não seria definitivamente uma grande nação. A diversidade de crença e de atitude cívica é o que leva um país ao desenvolvimento político e econômico, e, pois, social”.

Comparado com a situação na Turquia, o que está em jogo nos debates no Egito pode ser da maior significância para todo o mundo árabe, onde as correntes liberais estão ainda fracas e divididas, pelo menos anteriormente à organização e popularidade dos ativistas islâmicos. Na Síria, caso a ditadura de Bashar AL-Assad caia, os debates estarão envoltos em ira com relação à possibilidade de se estabelecer um estado civil laico ou islâmico. A emergência, no Egito, na Tunísia e na Síria, dos salafistas * – a corrente mais inflexível entre as que querem um estado islâmico radical – é um dos desdobramentos políticos mais notáveis nessas sociedades (“o Corão é a nossa Constituição”, como costumam dizer). Tal corrente – a mais poderosa no Egito e ainda representada pela Irmandade Islâmica – tem resistido obstinadamente a algumas mudanças do discurso muçulmano.

Quando o Sr. Erdogan expressou sua esperança em "um estado secular no Egito", que significa, explicou, um estado equidistante de todas as crenças, os líderes da Irmandade imediatamente atacaram-no, dizendo que a Turquia de Erdogan não serve de modelo algum, nem para o Egito nem para os seus islamitas.

Um porta-voz da Irmandade, Mahmoud Ghozlan, acusou a Turquia de violar a lei islâmica ou deixar de criminalizar o adultério. “Num sistema secular, isto é aceito, e as leis protegem o adúltero”, disse ele, “mas, pela ‘Shariah’ isto é um crime”.

Recentemente, em 2007, um protótipo de plataforma da Irmandade barrava as mulheres e os cristãos em servir como presidente do Egito e convocou um conselho de escolásticos religiosos para aconselhar sobre a conformidade de qualquer legislação com a lei islâmica. O grupo nunca repudiou o documento. Sua retórica de longa tolerância do Islã com as minorias quase sempre soa como uma condescendência à minoria cristã do Egito, que quer ser respeitada por uma cidadania igual, e não por proteções especiais. O novo partido da Irmandade Muçulmana tem apelado para que se crie uma sobretaxa especial aos muçulmanos para estimular as doações caritativas. De fato, o Sr. Tamimi, o escolástico, argumentou que alguns grupos majoritários, como a Irmandade, estavam sentindo o empuxo de suas crescentes ações assertivas conservadoras, que ainda apelam sem cessar por uma censura religiosa e por um sistema bancário isento de juros.

“É a democracia a voz da maioria?”, perguntou Mohammed Nadi, um estudante de 26 anos, num recente protesto salafista no Cairo. “Nós, como islâmicos, somos a maioria. Por que querem eles nos impor as opiniões de minorias — os liberais e os secularistas? Isto é tudo o que eu quero saber”.
Texto: Anthony Shadid e David D. Kirkpatrick, The New York Times, 28-09-2011
Tradução: Francisco Vianna

* O salafismo (do árabe: salafī, "predecessores" ou "primeiras gerações") é um movimento reformista islâmico que surgiu no Egito no final do século XIX dentro do que podemos referir como período de renascimento cultural árabe. O objetivo primário do movimento era reformar a doutrina islâmica de forma a adaptá-la aos novos tempos, foi um produto do intenso contacto que começou, desde os inícios do século XIX, entre o mundo islâmico e o mundo ocidental e pretendia chamar a atenção para uma via de desenvolvimento especificamente islâmica. Este movimento não se colocava somente contra doutrinas que estabeleciam uma identificação entre a modernização e a ocidentalização dos costumes culturais e sociais islâmicos de então (cujo exemplo mais notável pode ser apontado como o que se passou na Turquia, com a laicização do estado através do movimento dos Jovens Turcos, fundado por Kemal Atatürk), como também é contra o tradicionalismo mais fechado que abafa toda e qualquer modernidade procedente das influências ocidentais como algo que destrói tudo o que é islâmico. Saiba mais CLICANDO AQUI

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