sábado, 19 de novembro de 2011

Descompromissos geram dívidas

AD
Lícia Marques
Mesa de bar e outros locais de gandaia realmente facilitam os amores fáceis, embalados pelo descompromisso das viagens e baladas caríssimas, presentes de preços desmesurados (paixão dá prejuízo), gastos totalmente irrealistas para o seu padrão de assalariado, e é por isso mesmo que o cotidiano se complica pouco depois do desembarque na realidade: as contas chegam formando uma avalanche, bombadas pelo estouro do limite do cartão de crédito, o qual derruba o ânimo, deturpa e paralisa aquela figura até ali - a página 5, no máximo - apenas glamurosa, gentil e sorridente. Quase supérflua, admitirá você bem mais tarde.
Qualquer ajuda é bem-vinda, portanto, a primeira pessoa a ser requisitada para esse socorro material ou emocional imediato é justamente aquela que também se divertiu tanto até o início do caos alheio (sim, o SEU), e pode não estar disposta - nem um pouco - a compartilhar prejuízos de qualquer espécie, talvez por ser egoísta, acomodada... ou apenas superficial. E vai cair fora o mais rápido possível, argumentando ter outros problemas, não ser terapeuta ou economista, ou poderá mesmo ser radical: não curte gente falida... ou arrumou outro par mais estável, financeira e emocionalmente. E você fica no ora veja. Nem pense em procurá-la, porque ela já te deixou pra trás. A fila anda, nem que seja à base de um pé na sua bunda. Pobre só vai pra frente com empurrão, como você bem sabia antes de se atolar dessa forma.

Soa familiar? É um déja-vu? Você já viu – ou ajudou a escrever o roteiro e ainda escolheu a trilha sonora – desse filme, certo? Atire a primeira ou décima latinha de cerveja na cesta de lixo reciclável aquele que nunca passou por isso, ou ouviu uma história assim num fim de noite com amigos razoavelmente sóbrios, ou ainda teve que consolar um bêbado (exatamente aquele que te prometeu a carona de volta) ouvindo a deprimente breguice musical “Garçom, aqui nessa mesa de um baaaarrrrr...”. Você filosofa mentalmente: “ Zuzzzo beeemmm...”. E assim que possível, dá um perdido no bebum e vai embora a pé ou no último ônibus da madrugada, o célebre Cata-Corno. Faz sentido, mesmo em plena solteirice.
Já em casa, depois do Meio-Dia seguinte, você se prepara por saber que terá de administrar a saudade (carência dá nisso) e o arrependimento, e ainda fazer incríveis malabarismos - em alguns casos, diários - pra pagar as contas. Quase 100% da humanidade tentará esquecer a pessoa e se concentrar nos credores, que nunca dão trégua, algo muito útil no combate à solidão, porque o telefone, celular e/ou fixo, e-mail e caixa de correspondência residencial ficam congestionados... de cobranças, é óbvio, e assim permanecerão por um bom tempo, ou seja, até que se consiga limpar o nome no SPC, Serasa e afins, o que pode levar mais de um ano - na hipótese otimista  - porque a gandaia fez esquecer que em toda a história desse país tudo tem juros, exceto o SEU salário. E não chore nem se deprima. Agora é tarde demais pra se lamentar. Curta sua dor com um mínimo de dignidade: caladinho. Cerveja? Olhe o preço... E tome água. Do filtro, que mineral é cara, pelo menos na sua atual conjuntura; nada de beber na bica, porque você pode ter problemas estomacais, e a farmácia já cortou seu crédito, lembra? Assuma a falência de cabeça erguida. Chore escondido, mas resolva tudo na medida do (im) possível.
Aos poucos a roda-viva diminui a velocidade, porque as dívidas (leia-se “prestações em inadimplência”) são pagas, e você vai conseguindo retomar um raciocínio mais prático, que ajuda também a admitir os erros cometidos: misturar amor com dinheiro é uma imensa roubada – sem trocadilho – uma verdade que você ignorou naquela já um pouco distante época. Socar a parede num acesso de raiva não é nada aconselhável, acredite, principalmente se estiver sem o plano de saúde: nem sempre há gesso/tala/atadura/linha cirúrgica/agulha naquele posto de saúde perto de casa... e tétano mata.
O tempo passa mais um pouco; aproveitando uma promoção irresistível, você restabelece a internet doméstica; está aberta a temporada de caça aos amigos que se afastaram quando os convites eram sistematicamente recusados; refeitos os contatos, você seleciona os eventos e aos poucos retoma a vida social, sempre comedidamente: quase não bebe, sai pouco, evita comer fora de casa, mas curte muito no Facebook, Orkut (sim, ele ainda resiste) e fica online o maior tempo possível no fim de semana, batendo papos virtuais de madrugada (sempre de luz apagada pra evitar conta alta; lembrete: isso pode forçar a vista...óculos custam caro) e tentando arranjar mais um emprego pra equilibrar o ainda combalido orçamento. Pra melhorar o currículo, faz cursos online grátis, encontrados via São Google. A idade é uma barreira quase intransponível ,porém é preciso tentar. O cartão de crédito está cancelado há tempos – na época da venda do carro, que serviu para abater boa parte dos débitos mais pesados - mas você ainda não conseguiu pagar o empréstimo bancário feito pra liquidá-lo.
Entre emoticons engraçadinhos e muitas navegações em fóruns para aprender a elaborar planilhas financeiras, um dia você aparece no banco e vê que seu gerente de banco voltou a notar sua presença – sim, ele sorriu ao lhe ver, e estranhamente nele não há nenhum traço do clássico sarcasmo ao qual você se acostumou, e que nesse momento parece fazer falta - porque suas dívidas estão quase zeradas: falta só um ano e meio; chegando em casa, cata na caixa do correio os dois novos carnês de crediários, agora cuidadosamente arquivados na gaveta identificada com a etiqueta “PP”, que significa “Pagar Pontualmente”, substituta dos antigos sorteios mensais (“Jogo todas as contas pra cima; as que caírem no chão só vou pagar no mês que vem”).
Um banho, um lanche, e você entra na internet pra ler mais algumas dicas de economistas sobre como poupar com o objetivo de fazer o pagamento parcelado do Imposto de Renda e fazer bom uso do 13º na quitação de débitos de fim e início de ano...e casualmente descobre aquela pessoa. Com a força de um loop na Bolsa de Valores, nasce a dúvida: ignorá-la ou ter um bom papo, mesmo que apenas virtual? Você conseguiu evoluir em meio à crise; por isso perdoou-a (e a si também por ter sido tão otário) e gostaria de dizer-lhe isso, para então seguir seu caminho em paz; bom, e ela? O que fez nesse tempo? Curtiu muito no Facebook e for dele, se deu bem em tudo, ou apanhou da vida também?
Vocês estão agora a uma tecla de distância, pensando em todas as pressas, erros e indelicadezas cometidos mutuamente ou não. O seu pedido de amizade foi silenciosamente aceito, mas sua única mensagem – um pouco impessoal, quase padrão de internet – não foi respondida. Tempos depois, ela emite apenas um discreto sinal de atividade. Você dá um retorno sutil... e nada mais acontece. Você não libera adrenalina, porque amadureceu. Sabe que é hora de ser paciente; consegue se lembrar que aquela pessoa é orgulhosa e um pouco insegura, então decide deixar que ela faça o próximo movimento... ou não. Agora já não importa agir, porque você se superou. Nova e curta passagem de tempo.
Foto: Carvalho Pinto
Seu celular toca no fim de uma tarde de primavera, como provam os ipês floridos que você enxerga a caminho do trabalho noturno - afinal, hora-extra é indispensável - a bordo do novo carro finalmente comprado em 60 quase suaves prestações, cujos juros embutidos correspondem a um veículo popular zero km. É o seu gerente comunicando que seu cheque especial ressuscitou com um novo limite, já disponível. Em seguida,seu antigo cartão de crédito comunica que você merece uma nova chance. Cauteloso, você agradece e educadamente recusa a proposta.
Milagres ou confirmação do fim do mundo em 2012?
E a pessoa... Nem sinal. Aguarde. Deixe fluir e medite em meio a esse ensurdecedor silêncio, como dizem os esotéricos. Nada de convidar pra uma boa conversa pessoalmente. Você aboliu as loucuras e adotou a prudência, não se esqueça.
Concretamente, o que fazer? Desencanar e ir em frente com a calculadora na mão, sempre lembrando de que você fez a sua parte em tudo: arcou com os ônus gerais e específicos. Boa-sorte. Você vai precisar. E muito.
Título e Texto: Lícia Marques
Edição: JP

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4 comentários:

  1. Nossa! Vi boa parte da minha história aí. Ainda tenho esperança de terminar de pagar as contas que fiz para agradar e estar junto do que pensei ser o homem da minha vida. O tal homem não tinha a menor intenção ,disso e fiquei com o prejuízo das contas das contas, do amor não correspondido, e tudo o mais.
    Mas continuo acreditando no amor mas contas e carnês para agradar o outro nunca mais!
    Teca D.

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  2. Oi,Teca D.

    Escrevi baseada em histórias de amigas e amigos pertencentes a grupos que nem se conhecem.

    Claro,misturei e deu isso aí: prejuízos afetivos e materiais em comum.

    O bom é que vc - assim como essas pessoas - aprendeu a separar o sentimento do dinheiro. Amores, amores,negócios à parte.

    Abrs

    Lícia

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  3. :)

    Abraço, Lícia.

    Teca D.

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