Alberto Gonçalves
O livro de um colunista sobre
o Alentejo. As atoardas de um cançonetista sobre Trás-os-Montes. Em poucos
meses, estas duas trivialidades tão distintas despertaram a fúria de inúmeros
naturais de ambas as províncias, incluindo ameaças aos respectivos autores e
afirmações de orgulho regional. Tanto o "povo alentejano" (?) como o
"povo transmontano" (?) fizeram questão de dizer a Henrique Raposo e
a José Cid que não engoliriam palpites alheios, por muito que os do primeiro
merecessem um debate adulto e os do segundo nem merecessem comentários.
Não se trata de uma
especificidade territorial: caso os alvos fossem minhotos ou algarvios,
ribatejanos ou beirões, tenho a certeza de que a reacção seria semelhante. É o
velho chavão do "Quem não se sente não é filho de boa gente", que por
cá atravessa geografias. Em Portugal, quase todos os progenitores devem ser
gente maravilhosa e impecável, já que quase todos os filhos passam a vida a
sentir-se, além de que sentem com impressionante intensidade. Desde que, falta
acrescentar, se sintam contra um alvo isolado ou fácil.
Não é por nada, mas os
valentes portugueses que despejam indignações em cima do Henrique ou do sr. Cid
parecem-me, assim por alto, os mesmos que toleram, quando não aplaudem, tudo o
que de facto importa. São os mesmos portugueses que acham normal, ou desejável,
o PS costurar uma tramóia "constitucional" para tomar o poder e
subordiná-lo a estalinistas ou aparentados. São os mesmos portugueses que acham
razoável, ou, a acreditar nas sondagens, espectacular, que o governo recupere o
prodigioso legado económico de José Sócrates, agora sob orientação sindical e
com adornos "fracturantes". São os mesmos portugueses que acham
adequado, ou louvável, que um balão sorridente disfarçado de primeiro-ministro
brinque com as organizações internacionais que, em última e penúltima
instâncias, nos têm aguentado uns furos acima da Roménia. São os mesmos
portugueses que acham correcto, ou excelente, o uso das escolas públicas para
perpetuar as desigualdades e alimentar a obediência do bom povo. São os mesmos
portugueses que acham normal, ou oportuno, que um rapazito que vê na iniciativa
privada um sintoma do Terceiro Mundo esteja no Parlamento e não no hospício.
São os mesmos portugueses que acham razoáveis, ou "giras", propostas
legislativas que deixam as crianças mudar de sexo e os idosos serem
abandonados. São os mesmos portugueses que acham compreensível, ou fabuloso,
que uma deputada denuncie os inimigos da "laicidade" e a
discriminação dos gays enquanto exalta a mesquita que os contribuintes pagarão
em Lisboa. São os mesmos portugueses que acham pertinente, ou radiosa, a nova
mesquita de Lisboa.
Os insubmissos portugueses
submetem-se, mudos ou felizes, a um presidente que confunde a função com um
circo de irresponsabilidades. A polícias que lhes explicam o sistema de multas
criado para os pilhar. A "estadistas" que os "aconselham" a
andar de autocarro, ou a pé, ou de jumento. A sindicalistas que escarnecem
diariamente do seu trabalho. A tiranetes colocados em cada esquina ou
ministério. E, nas próximas semanas, ao fervor patriótico da selecção da bola,
para gritar "Portugal! Portugal" e ignorar que o país verdadeiro se
afunda sem remédio.
Filhos de boa gente e de quem
calha, os portugueses sentem-se. O problema é que, com as prioridades do
avesso, sentem-se mal. E não tarda vão sentir-se pior.
Assinar
de cruz
Eis algumas das
"personalidades" que assinaram a petição "Em defesa da escola
pública", lançada pela simpática Fenprof: Pedro Abrunhosa, Fausto (o das
cantiguinhas, não o de Goethe), Baptista Hífen Bastos, Manuel Alegre, Helena
Roseta, um escritor chamado valter hugo mãe e, naturalmente, o baterista dos
Xutos & Pontapés.
Das duas, uma. Se as referidas
"personalidades" frequentaram escolas privadas, ou nelas inscreveram
a descendência, trata-se da maior concentração de hipócritas ou alucinados
desde que, na apresentação do Trabant, os engenheiros da VEB Sachsenring
anunciaram ao mundo: "Ora aqui está um grande carro."
Se, por outro lado, os vultos
em causa frequentaram a escola pública, convinha apurar a dimensão dos estragos
que esta anda a causar ao país. Uma coisa é darmos por adquirido que a nossa
instrução média é incapaz de preparar as crianças para o mundo real: na pior
das hipóteses, arranja-se sempre o emprego sazonal no Algarve, a casa dos pais
ou um subsídio de "inserção". Coisa muito mais grave é verificar que
o ensino estatal é responsável por espécimes como o sr. Abrunhosa ou a
arquitecta Roseta, para os quais nem Aristóteles conseguiria descobrir
utilidade. A propósito, onde é que "estudou" o sr. Mário Nogueira e
porque é que ainda ninguém fechou aquilo?
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 5-6-2016
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