João Miguel Tavares
O regoverno
precisa de tragédias alheias para sobreviver à sua própria tragédia
Ouro vai direitinha para
António Costa, que atingiu o zénite da estultice e da desonestidade intelectual
com uma comparação obscena: “Quando só esta semana mil seres humanos morreram
afogados no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa, o que a Europa parece querer
discutir é se o anterior Governo português excedeu, em duas décimas, os limites
do défice orçamental.”
É uma frase extraordinária.
Porque só há duas hipóteses. Uma, é António Costa acreditar realmente que um
político, um ministério, um governo ou uma instituição só deve preocupar-se com
uma questão de cada vez, devendo dar atenção exclusiva à mais importante. Por
exemplo: se há sírios a morrer no Mediterrâneo, as sanções a quem infringiu o
Tratado Orçamental terão de esperar até que mais ninguém se afogue. Afinal, uma
vida humana não é mais importante do que as contas do défice? Claro que é.
Mas, por outro lado, e
seguindo o mesmo espectacular raciocínio do primeiro-ministro, o desemprego
também é mais importante do que o futebol. Ora, havendo tantos portugueses
desempregados, será que António Costa pode aparecer nas televisões a discutir a
forma física de Cristiano Ronaldo? Negativo: enquanto o INE não anunciar o
pleno emprego, o primeiro-ministro deverá refrear-se de ver jogos da selecção,
ir ao cinema ou perfazer puzzles. Podíamos continuar por aí fora, porque tão
admirável lógica é rica em comparações: se há gente sem casa em Lisboa, não se
compreende que a câmara gaste tanto dinheiro a adornar com vegetação a Avenida
da República. As árvores que aguardem por transplante até todos os lisboetas
terem um tecto.
E porque não fazer
extrapolações a partir dos números de António Costa? Mil sírios afogados
permitem que 0,2 pontos percentuais escapem sem sanções. Talvez dois mil
permitam dobrar esse valor. E se houver suficientes vítimas a afundarem-se no
Mediterrâneo, é possível que a política económica do governo passe em Bruxelas
com um encolher de ombros. Eis uma variável que Mário Centeno deveria
apressar-se a introduzir no seu Excel. Ah, e se alguns leitores acaso acharem
que demonstro pouca sensibilidade com contas tão desagradáveis, isso é apenas
porque estou a fazer o mesmo do que António Costa: misturar mortos com números
do défice.
Existe, claro, uma segunda
hipótese para justificar aquela frase, embora tão indecorosa quanto a primeira:
na sua longa carreira política, António Costa já foi capaz de tratar de mais do
que um assunto em simultâneo, e por isso está apenas a fazer demagogia barata.
Barata, sim, mas não inteiramente desnecessária: nesta altura do campeonato,
Costa já precisa de recorrer a tudo para justificar a sua impotência
governativa, incluindo dramas humanitários.
O que é irónico na sua
comparação é ela revelar indirectamente aquela que é a porta de saída para a situação
insustentável em que se enfiou: o regoverno precisa de tragédias alheias para
sobreviver à sua própria tragédia. Sejam as vítimas sírias, as greves
francesas, as eleições espanholas, as manifestações gregas ou o Brexit, António
Costa está com os dedos cruzados para que alguma coisa na Europa corra
suficientemente mal para permitir o relaxamento das restrições orçamentais.
Esta é a triste verdade: os males da Europa e a acumulação de desgraças são a
única salvação possível para a desgraça do seu governo.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público, 9-6-2016
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público, 9-6-2016
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