domingo, 12 de junho de 2016

Afogar o défice no Mediterrâneo

João Miguel Tavares

O regoverno precisa de tragédias alheias para sobreviver à sua própria tragédia

Ouro vai direitinha para António Costa, que atingiu o zénite da estultice e da desonestidade intelectual com uma comparação obscena: “Quando só esta semana mil seres humanos morreram afogados no Mediterrâneo a tentar chegar à Europa, o que a Europa parece querer discutir é se o anterior Governo português excedeu, em duas décimas, os limites do défice orçamental.”

É uma frase extraordinária. Porque só há duas hipóteses. Uma, é António Costa acreditar realmente que um político, um ministério, um governo ou uma instituição só deve preocupar-se com uma questão de cada vez, devendo dar atenção exclusiva à mais importante. Por exemplo: se há sírios a morrer no Mediterrâneo, as sanções a quem infringiu o Tratado Orçamental terão de esperar até que mais ninguém se afogue. Afinal, uma vida humana não é mais importante do que as contas do défice? Claro que é.

Mas, por outro lado, e seguindo o mesmo espectacular raciocínio do primeiro-ministro, o desemprego também é mais importante do que o futebol. Ora, havendo tantos portugueses desempregados, será que António Costa pode aparecer nas televisões a discutir a forma física de Cristiano Ronaldo? Negativo: enquanto o INE não anunciar o pleno emprego, o primeiro-ministro deverá refrear-se de ver jogos da selecção, ir ao cinema ou perfazer puzzles. Podíamos continuar por aí fora, porque tão admirável lógica é rica em comparações: se há gente sem casa em Lisboa, não se compreende que a câmara gaste tanto dinheiro a adornar com vegetação a Avenida da República. As árvores que aguardem por transplante até todos os lisboetas terem um tecto.

E porque não fazer extrapolações a partir dos números de António Costa? Mil sírios afogados permitem que 0,2 pontos percentuais escapem sem sanções. Talvez dois mil permitam dobrar esse valor. E se houver suficientes vítimas a afundarem-se no Mediterrâneo, é possível que a política económica do governo passe em Bruxelas com um encolher de ombros. Eis uma variável que Mário Centeno deveria apressar-se a introduzir no seu Excel. Ah, e se alguns leitores acaso acharem que demonstro pouca sensibilidade com contas tão desagradáveis, isso é apenas porque estou a fazer o mesmo do que António Costa: misturar mortos com números do défice.

Existe, claro, uma segunda hipótese para justificar aquela frase, embora tão indecorosa quanto a primeira: na sua longa carreira política, António Costa já foi capaz de tratar de mais do que um assunto em simultâneo, e por isso está apenas a fazer demagogia barata. Barata, sim, mas não inteiramente desnecessária: nesta altura do campeonato, Costa já precisa de recorrer a tudo para justificar a sua impotência governativa, incluindo dramas humanitários.

O que é irónico na sua comparação é ela revelar indirectamente aquela que é a porta de saída para a situação insustentável em que se enfiou: o regoverno precisa de tragédias alheias para sobreviver à sua própria tragédia. Sejam as vítimas sírias, as greves francesas, as eleições espanholas, as manifestações gregas ou o Brexit, António Costa está com os dedos cruzados para que alguma coisa na Europa corra suficientemente mal para permitir o relaxamento das restrições orçamentais. Esta é a triste verdade: os males da Europa e a acumulação de desgraças são a única salvação possível para a desgraça do seu governo.
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público, 9-6-2016

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