Maria João Marques
Após o Brexit gostaria que a União
Europeia ficasse combalida e regressasse ao espírito da CEE, assente no
comércio livre e nas quatro liberdades de circulação: pessoas, bens,
mercadorias e capitais.
Calhou ir passar uns dias a
Londres e chegar no dia do referendo. Das pessoas todas com que fui metendo
conversa sobre o assunto, só encontrei um votante do Leave (e
ainda no dia da votação; sem surpresas, foi o mais velho). Mas não queria de
maneira nenhuma sair da União Europeia. Queria só ganhar capacidade negocial
para impor limites à interferência britânica na vida dos ingleses e, se o referendo
acabasse em Remain, preocupava-o que a partir daí a Grã-Bretanha
fosse tomada como certa: tiveram a oportunidade de sair, não aproveitaram,
agora sentem-se direitinhos e não revirem os olhos a cada novo delírio da
Comissão ou do Parlamento Europeu. (As palavras ilustrativas são minhas, mas o
sentimento é do meu interlocutor.)
Outro, taxista muito tatuado,
estava abalado com o resultado e a demissão de Cameron e só repetia que era
preciso respeitar a democracia. Dois irlandeses (da parte republicana), em duas
lojas diferentes de Mayfair, estavam divertidos com o choque e pavor em que
viam o Reino Unido. Outra pessoa dizia, no dia do resultado, ‘it feels weird in
London today’. Uma portuguesa a trabalhar numa pizzaria contava que os amigos
que votaram Leave não estavam a contar ganhar e já se tinham
arrependido.
Mas o resultado foi o que foi,
e não adiantam pesares ou arrependimentos. Tal como é inútil deambular à volta
da evidência dos líderes do Leave, Boris Johnson e Nigel Farage,
preferirem ter perdido e não magicarem o que fazer com a vitória. Farage já
pediu no Parlamento Europeu um acordo de comércio – depois de tratar a EU como
um Darth Vader supranacional, zona de comércio livre incluída. (A acrescer à
desgraça, Farage corre o risco de abandonar o bem pago lugar no Parlamento
Europeu para o desemprego, o que acontecerá se não conseguir expulsar do reino
os malvados estrangeiros, quem sabe até reverter a invasão normanda.) Boris já
garantiu (decidiu sozinho pelos quinhentos milhões de habitantes da EU) que os
estrangeiros poderiam permanecer na Grã-Bretanha e os britânicos que trabalham
e vivem no continente lá continuariam – no fim de uma campanha xenófoba que
culpou os estrangeiros residentes no Reino Unido de todos os males desde as
pragas do Egito. Mais uns dias e corremos o risco de assistir a um súbito amor
britânico pelo trabalho empenhado dos parlamentares europeus em prol do tamanho
adequado dos autoclismos e dos urinóis.
Com o Brexit, confesso que não
sei qual será o caminho da União Europeia. Gostaria que ficasse combalida e
regressasse ao espírito da CEE, assente no comércio livre e nas quatro
liberdades de circulação: pessoas, bens, mercadorias e capitais. E que parasse
com as aventuras integracionistas. Já agora, que percebesse que muita da
regulamentação e legislação que produz é, no mínimo, ridícula e, no máximo,
daninha. Sobretudo: que entendesse as razões das – como dizem os ingleses –
classes trabalhadoras quanto à imigração. É muito bonito a quem vive numa zona
cara de uma qualquer cidade europeia (e tem um trabalho protegido destas
concorrências) insultar de racista e similares quem compete pelos empregos com
os imigrantes e vê a sua zona de residência tornar-se irreconhecível. No caso
particular britânico, a imigração islâmica está fora de controlo e é
inteiramente compreensível que os autóctones não gostem de ter partes de
cidades onde não entram nem as polícias nem as leis britânicas.
Mas as consequências para o
Reino Unido são uns claríssimos custos económicos. Sou sempre favorável a
acordos que potenciem o comércio entre países. Ainda assim, mesmo que a EU e o
Reino Unido acordem não aplicar tarifas alfandegárias (o que implicará a livre
circulação de pessoas, o grande satã da campanha do Leave, com políticos
conservadores a exercitarem linguagem que parecia ressuscitada da British Union
of Fascists), o comércio entre as duas zonas tenderá a diminuir. Por pequenos
fatores que serão dissuasores: empresas de seguros de créditos que encarecem os
prémios para as trocas para fora da UE; maior dificuldade que novas pequenas
empresas podem ter em participar em feiras e contactar clientes; incerteza e
insegurança de um sistema legal fora da alçada da UE para dirimir conflitos; e
um longo etc. Se preferirem (e Cameron diz que preferem) o controlo da
imigração ao comércio livre, então serão um país pária, que terá de negociar
acordos de comércio com o resto do mundo – levará tempo e nem terão o peso
negocial de um mercado de 500 milhões de europeus.
O atual poder global do Reino
Unido pode ser medido pela reação britânica às recentes intromissões do governo
chinês em Hong Kong, que já destemidamente raptou no território donos de
livrarias que vendem livros críticos de Pequim. O atropelo ao que foi negociado
por Thatcher com os chineses é total, mas os britânicos ficaram calados e
quietos. O tempo em que os britânicos impunham aos chineses – e ao mundo – os
tratados desiguais já só existe nos livros de história.
Pelo que é provável que o
Brexit seja um bom passo no caminho para a irrelevância. Como de resto foram
tantas bravatas arrogantes britânicas. A mão pesada a sufocar o movimento de
independência indiano e a recusa em oferecer-lhe estatuto de Domínio – e a
Índia acabou republicana. A aliança contranatura com Estaline durante a segunda
guerra mundial que entregou metade da Europa ao comunismo durante cinquenta
anos. A insistência na divisão da Irlanda, para deitar pimenta nos ódios
religiosos – que a partilha de poder entre Londres, Dublin e Bruxelas
suavizava. Por aí adiante.
E nem chegamos a falar da
libra em queda ou do investimento suspenso. Nem da city londrina, que John Le
Carré colocou no livro (vem aí o filme) Um Traidor dos Nossos a ser
salva, no pós-2008, por depósitos massivos de criminosos de proveniências
sortidas para lavarem dinheiro. Terá o mesmo apelo, até para o crime, sem a
livre circulação de capitais na UE?
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
29-6-2016
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