José Couto Nogueira
Os alemães têm fama de ser
rígidos, mas são os ingleses que têm o comportamento mais codificado da Europa.
Quando duas pessoas não sabem sobre o que falar, falam do estado do tempo. Quando
não sabem o que fazer, bebem chá. Têm horas precisas para começar e parar de se
alcoolizar. Inventaram palavras para quando precisam de dizer alguma coisa e
não querem dizer nada ("indeed" é uma delas). Vivem num sistema de
classes em que até a maneira de falar distingue imediatamente a aristocracia da
classe média e esta do proletariado. E sim, continuam a ter esse sistema de
castas de mobilidade muito reduzida, apesar das instituições democráticas.
Tudo isto é causa e efeito. A
causa é esconder a baixa quantidade de neurónios. Se soubermos como nos
comportar em todas as circunstâncias e o que dizer de apropriado em qualquer
altura, não precisamos de usar muito a cabeça. O efeito é uma sociedade que,
apesar dos seus problemas, conseguiu construir um Império e impor uma pretensa
superioridade a toda a gente. Que problemas, poder-se-á perguntar. São
tantos, mas bastará enumerar alguns: o hooliganismo e o alcoolismo, as 140 mil
crianças e adolescentes que desaparecem por ano, os 700 hectares de Londres que
pertencem à Rainha e dois nobres, mais os 250 hectares que estão na mão dos
sheiks do Golfo. O orgulho e preconceito, já dizia Jane Austen. Todos estes e
muitos outros indicadores de um país difícil desaparecem debaixo da maior
invenção dos ingleses, o sentido de humor, e também de um estilo muito forte
que dá ideia de qualidade e duração aos produtos britânicos.
Isto não quer dizer que o
Reino Unido não tenha gente de qualidade e grandes feitos no currículo,
evidentemente; basta fazer a lista dos filósofos e cientistas, das
descobertas e das invenções que mudaram o mundo. Mas a questão que está agora
na mesa é o Brexit – não só a votação em si, como a atitude pós-referendo. É
essa atitude, deveras surpreendente, que coloca em cima da mesa o tal problema dos
neurónios.
Logo no dia do referendo, ao
saber-se os resultados, os seus protagonistas vieram a público. Nigel Farage, o
único verdadeiramente eurofóbico, disse que tinha mentido durante toda a
campanha, ao afirmar que o dinheiro que se enviava para a UE será gasto em
Assistência Social (serviços de saúde e pensões); David Cameron, que propôs o
referendo para se manter no poder, mas era contra a saída, perdeu a consulta, e
tem que se demitir. Boris Johnson, que apoiou a saída para tirar o lugar a
Cameron, veio logo dizer que não há pressa em sair e, numa especulação
vergonhosa, que os ingleses não vão perder quaisquer direitos na Europa. Jeremy
Corbin teve um papel tão apagado que os trabalhistas já o querem substituir.
Isto ao nível dos que mandam.
E os que obedecem? Segundo o Google, as consultas mais frequentes na Grã
Bretanha na sexta-feira – depois de sabidos os resultados, foram: "O que é
a União Europeia?" e "O que acontece se sairmos da UE?" Em
incontáveis entrevistas feitas na rua, as pessoas dizem que estão arrependidas
e dão justificações do outro lado da Lua por ter votado no Brexit:
"Não votei para sairmos,
era mais um voto de protesto".
"Na outra vez votei para
ficarmos e a vida não me tem corrido bem, portanto achei que devia votar ao
contrário."
"Fiquei chocada quando
soube o resultado, porque agora percebi que estamos a tramar os jovens e a
poupança de 350 milhões de libras (?) não vai muito longe." (Senhora de 87
anos, esta.)
"Votei para protestar
contra as populações rurais esquecidas e as zonas industriais abandonadas, e
porque estou farto do egocentrismo de Londres."
"No meu prédio moram uma
data de húngaros e estou farto de os ouvir a falar húngaro."
"Votei para sair porque
achei que íamos ficar e o meu voto não faria diferença."
"Votei pela saída porque
não quero assistir a mais jogos do Euro."
Há dois ou três vídeos que se
tornaram virais nas redes sociais onde as pessoas justificam o Brexit da
maneira mais idiota. Num deles, "My Stupid Girlfriend Explains Why She Vote Brexit" (isto é mesmo real, por amor de Deus?!)
uma adolescente explica que prefere comer ovos de galinhas inglesas, em vez de
ovos de galinhas que não se sabe de onde vêm.
Os disparates, raciocínios
irracionais e a pura estupidez aparecem agora no Twitter, nas redes sociais e
nas cartas aos jornais. De repente, a sensação que dá é que foi tudo um
engano. Claro que é menos provável que as pessoas que votaram para sair e acham
que fizeram bem se manifestem, mas as consultas feitas na rua pelas televisões
mostram a mesma quantidade de arrependimento.
No que pode ser uma situação
histórica inédita, o projecto maravilhoso que é a UE pode começar o seu fim,
porque pessoas que não percebem bem o querem, no segundo pais mais importante
da União, tomaram uma decisão precipitada.
Depois, há o lado terrível.
Os xenófobos, anti-imigrantes, fascistas e saudosos do Império acham que o
resultado do referendo lhes dá imediatamente carta branca para por cá para fora
todo o seu ódio. Num bairro periférico onde vivem muitos polacos, apareceu nas
caixas do correio e nas paredes um folheto bilingue que diz "Porcos
polacos voltem para casa". Muitas pessoas, sobretudo as que não têm o
suposto arquétipo britânico (pele muito branca, louro ou ruivo) ou que se
vestem exoticamente queixam-se que têm sido insultadas, empurradas e, em alguns
casos, agredidas. Duas amigas que estavam num café viram um homem encostar-se
ameaçadoramente à mesa e dizer-lhes "Vão para a vossa terra!" Respondeu
uma delas: "Mas nós nascemos aqui, esta é a nossa terra." "Não
parecem nada" respondeu o bruto. Alguns portugueses também já se queixaram
de ouvir coisas desagradáveis. Uma passageira de Lisboa, quando mostrou o
cartão de cidadão no aeroporto de Heathrow, o funcionário disse-lhe logo,
agreste: "Da próxima vez, esse já não serve!"
Finalmente, há a enorme
confusão entre imigrantes europeus e não europeus. Os estrangeiros que mais
incomodam os ingleses são os que vieram do Paquistão, Índia e os muçulmanos
radicais. A sua presença, em muitos casos há várias gerações, tem a ver com a
Commonwealth. Ora, nenhuma destas três origens é europeia, e portanto a sua
entrada em nada sofrerá com o Brexit.
O parlamento escocês decidiu
que vai fazer um novo referendo para se separar da Inglaterra e depois aderir à
UE. Os irlandeses do Norte estão até dispostos a juntar-se à República da
Irlanda para continuar na Europa. E há um pedido para que se faça novo
referendo – no domingo já tinha dois milhões e quinhentas mil assinaturas.
Ora, a verdade é, pela lei
britânica, o referendo não é vinculativo. Trata-se apenas de uma consulta.
Isto não está especificamente escrito, uma vez que o Reino Unido não tem uma
Constituição, mas é a tradição. Segundo o "Guardian", em rigor
Cameron podia ignorar o acto e ficar-se por aí. Mas entretanto ele já disse que
aceita o resultado. Portanto terá de apresentar a proposta ao Parlamento. O
Parlamento pode rejeitar e decidir que tudo não passou tudo do tal humor
britânico que disfarça tão bem a questão dos neurónios.
O problema é que os alemães,
que não são notórios pelo sentido de humor, podem achar que então não passou de
uma sórdida chantagem – um bluff à escala continental.
Título e Texto: José Couto Nogueira, Sapo 24, 29-06-2016
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-