Rui Ramos
O governo devolve salários ao
funcionalismo, mas tira-lhe os meios para desempenhar o seu papel. O Estado
social só interessa ao governo como uma bolsa de clientelas, e não como garante
de serviços.
À espera do novo orçamento de
Estado, por entre o aguaceiro de contra-informação governamental, o país ouviu
anteontem o presidente da república pedir entendimentos. Entendimentos para muita coisa:
saúde, educação, “reforma do Estado” e até a segurança social. Fica bem ao
presidente da república tentar manter as aparências. Segundo os folhetos
turísticos distribuídos em Bruxelas, Portugal tem hoje um governo e uma maioria
estáveis, muito aplicados no cumprimento do Tratado Orçamental. Só alguns
taxistas, que aliás não representam a “classe”, se portam menos bem. Mas
devemos nós ficar-nos pelas aparências?
Reparem: não nego que a
principal empresa de greves e de manifestações em Portugal, a CGTP, parece
menos assídua. Reconheço que os partidos da maioria só fazem o ruído necessário
para não se esquecerem deles. Admito que o governo deseja mesmo o défice
negociado em Bruxelas. Sim, a estabilidade, por esse lado, não podia ser maior.
Mas o noticiário tem um reverso: o crescimento económico cai, os impostos
multiplicam-se, a dívida sobe, a dependência do BCE é maior. Graças ao dinheiro
barato de Mario Draghi, ninguém sabe quanto tempo isto pode durar. Poder-se-á
entretanto fazer alguma coisa?
Não se pode fazer nada. O
abraço de António Costa ao PCP e ao BE teve este efeito: bloqueou o regime
político, em mais de um sentido. Por um lado, porque da maioria formada por
Costa, PCP e BE nunca poderá vir nada, a não ser dinheiro e regalias para as
respectivas clientelas, já que em pouco mais os três parceiros se entendem
(salvo na estranha ficção de tratar os Verdes como um partido verdadeiro). Por
outro lado, a nova maioria rompeu a outra maioria que existiu em Portugal desde
1976: a maioria democrática e europeísta, a maioria do 25 de Novembro, a
maioria das revisões constitucionais, e a maioria da adesão à CEE e à Moeda
Única. Não era apenas a maioria que fundou o regime: era a maioria que lhe dava
sentido, dinamismo, iniciativa, capacidade de se adaptar. Sem essa maioria, o
regime está literalmente paralisado num concurso de demonização mútua. A antiga
maioria democrática foi, por vezes, uma maioria de renovação e reforma; a nova
maioria social-comunista será sempre uma maioria de esclerose e regressão.
Mas o governo trabalha no
Orçamento, dir-me-ão. Sim, é verdade, o governo trabalha. Precisa de distribuir
dinheiro, e depois, porque não pode alienar o financiamento do BCE, precisa de
ir buscar dinheiro. Esta ginástica orçamental até poderá saciar os devidos
clientes e dependentes, mas acabará por estrangular a economia, quer com a
invencionice fiscal que temos admirado, quer com uma incerteza que fará cada
vez mais investidores e trabalhadores hesitar ou desistir. Muita gente já o
disse. Mas faltará dizer que não é só a economia que se degrada.
Tem sido comentado o efeito do corte de investimento e de
“consumos intermédios” na qualidade dos serviços públicos. Creio, porém, que as
suas consequências para o regime ainda não foram devidamente apreciadas. O
governo devolve salários ao funcionalismo, mas tira-lhe, ao mesmo tempo, os
meios para desempenhar o seu papel. Não poderia haver melhor sinal de que o
Estado social só interessa ao governo e à maioria como uma bolsa de clientelas
e de dependentes, e não como prestador ou garante de serviços à sociedade. Em
Portugal, começamos a deixar de ter um Estado social para passar a ter um
Estado fundamentalmente político-eleitoral: a prioridade é acomodar clientes;
os benefícios para o resto da população são incidentais. Este vai ser o
orçamento desse Estado. Pede-lhes o presidente que não pensem em eleições. Mas
em que mais poderiam eles pensar?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
14-10-2016
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