Maria João Marques
O racismo e as suas consequências são
demasiado graves, e mais grave será se as próprias minorias defenderem a
segregação social e cultural: os do outro lado esfregarão as mãos de
contentamento.
Vamos fazer um exercício. O
que diria o caríssimo leitor se lesse num grande jornal americano uma crónica
de um académico branco, votante de Trump, perguntando no título ‘Podem os meus
filhos ser amigos de pessoas de cor’? E que lá no corpo do texto apanhasse
frases do calibre das seguintes.
‘Vou ensinar [aos meus filhos]
a serem cautelosos, vou ensinar-lhes suspeição, vou ensinar-lhes desconfiança.
Mais cedo do que pensava, terei de discutir com os meus filhos se podem
verdadeiramente ser amigos de afro-americanos.’
‘Poupem-me as platitudes de
que por dentro somos todos iguais. Primeiro tenho de manter os meus filhos em
segurança.’
‘Não escrevo isto com
condescendência conservadora nem prazer. O meu coração está intoleravelmente
pesado quando vos asseguro que não podemos ser amigos.’
Apesar de no fim do texto o
autor escrever qualquer coisa na linha ‘eu até tenho amigos afro-americanos
(mas dos bons, que não se drogam, não roubam, nem vivem dos cupões
alimentares)’, para assegurar que, na verdade, é um tipo bestial sem réstia de
preconceito, qual seria a reação? Não me parece excessivo supor que seria um
escândalo e o autor insultado por todo o lado como o maior racista vivo.
Pois bem, as fases e o título
são traduções desta coluna de opinião do New York Times, com a cor
de pele e o posicionamento político do autor alterados. Assim já não há
problema, pois não? Como é um professor universitário afro-americano a
proclamar que os brancos não são dignos de amizade (a não ser que se esforcem
muito, e sempre de pé atrás a ver se não lhes escapa nenhum ato compulsivo de
solidariedade com a sua raça), que o melhor é os seus filhos perceberem cedo
que não se devem dar com gente dessa laia – está tudo bem, certo?
O autor não afirmava ser
impossível a amizade com trumpistas, ou sequer com republicanos – o que já
seria infantilidade, mas pronto, estaria pelo menos a avaliar as pessoas pelas
decisões políticas que tomam e pelos valores. Ana Drago um dia também disse que
não tinha amigos de direita. Há lunáticos em todo o mundo desenvolvido e por
desenvolver. Não: é qualquer pessoa branca por defeito. Racismo, aventariam os
distraídos.
É certo que os afro-americanos
não sararam a escravatura, a segregação nos estados sulistas, e, sobretudo, as
consequências económicas atuais de gerações atrás de gerações pobres e sem
muita educação formal. Há razões de queixa. Tal como há razões de queixa dos
brancos, à conta da criminalidade ou dos problemas sociais criados pelo colapso
das famílias afro-americanas, com pais presos ou voluntariamente ausentes da
vida (e do sustento) dos filhos e mães descasadas com filhos de vários pais.
No entanto escapa-me onde esta
retórica de apelo à segregação é benéfica. Não obstante, os ativistas aparentam
estar viciados nela.
A apropriação cultural é outra
maravilha do mundo moderno. Numa universidade do Massachussetts duas estudantes
brancas foram atacadas porque – crime hediondo – tinham tranças no cabelo e isso é apropriação
cultural. A filha de Kate Moss fez publicidade para um cabeleireiro londrino de
tranças e logo a Teen Vogue lhe estendeu o dedo acusatório. Rastas? Persigne-se e desista de desrespeitar a cultura
alheia.
Isto é tão ridículo que nem se
consegue discutir seriamente. Penteados diferenciados por raças – como é que
ninguém se tinha lembrado? É que nem se trata de uma tentativa de contenção das
pilosidades cranianas de Kim Jong-un na Península Coreana.
Sempre supus que usar
elementos estéticos de outra cultura fosse um tributo. É um reconhecimento da
capacidade do outro criar algo desejável. Sempre olhei para a História e vi
como bons os períodos de trocas e contatos entre as diferentes partes do mundo.
Uma marca de roupa espanhola, de que gosto muito, há uns anos apresentava
etiquetas nas peças rezando ‘feito na Índia, desenhado em Espanha, inspirado em
todo o lado’. Este é um género de universalismo que me apela.
Porém, nestes tempos minados,
tudo terá de ser uma usurpação. A tempura japonesa é uma apropriação cultural
dos portugueses peixinhos da horta. O lápis preto que uso nos olhos todos os
dias é uma apropriação cultural do khol indiano. Aqueles ocidentais que se
mudam para a Tailândia e lá ficam a viver trajados de sarongs e misturando-se
com a população local? Uns racistas imperialistas a explorar os recursos
criativos dos thai. Europeus que ponham umas capulanas merecem ser chicoteados
num pelourinho. Ah, claro, ninguém a converter-se a religiões que proliferam a
mais de cinquenta quilómetros do local de nascença de cada um.
Estou neste momento a iniciar
uma petição para abandonarmos na Europa a numeração árabe e passarmos a usar
(orgulhosamente) os números romanos. Vão se faz favor a minha casa destruir as
aguarelas chinesas que exibo nas paredes. Mas atenção. Está muito bem as
mulheres negras esticarem o cabelo. E usarem minissaia, que foi inventada por
uma inglesa quiçá de ascendência saxónica ou viking.
O racismo e as suas
consequências são demasiado graves para estarem representados por estas
questiúnculas diletantes. Se as próprias minorias defendem segregação social e
cultural, os do outro lado que pretendem o mesmo esfregam as mãos de
contentamento.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
15-11-2017
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