Rui Ramos
O alegado comportamento de Harvey Weinstein
e Kevin Spacey só é possível numa cultura onde o assédio sexual pôde passar por
um “pecadilho” menor. E a chamada "libertação sexual" contribuiu para
isso.
Nas últimas semanas, a onda do
assédio sexual tocou quase tudo. Começou nos EUA, com o produtor
cinematográfico Harvey Weinstein. Depois, saltou para o Reino Unido, com o
encenador de teatro Max Stafford-Clark. A seguir, passou pela Suíça e pela
França, com o professor universitário e intelectual muçulmano Tariq Ramadan, para regressar aos EUA, com o ator Kevin Spacey, e finalmente forçar a demissão do ministro da
Defesa do Reino Unido, Michael Fallon.
Como seria de prever, toda a
gente tem tentado marcar pontos. A esquerda usou o escândalo para, como sempre,
denunciar um sistema que submete as mulheres aos apetites de homens em posições
de poder. Mas nos EUA, a direita, geralmente de prevenção contra o
politicamente correto, juntou-se desta vez ao arraial, para aclamar a queda de alguns dos maiores financiadores e propagandistas de Hillary Clinton, como Weinstein e Spacey: eis o
esquerdismo chique de Hollywood, sempre pronto a atacar Trump em nome, entre
outras coisas, da igualdade dos sexos, finalmente exposto como uma mascarada
hipócrita.
Weinstein, Spacey e os outros,
se as alegações forem verdadeiras, não têm desculpa. Mas o que lhes permitiu
comportarem-se assim durante décadas, no meio do silêncio de toda a gente,
incluindo das suas vítimas? Apenas o seu lugar na hierarquia? Homens poderosos
também têm inimigos. Algo mais jogou a seu favor: uma cultura onde este tipo de
agressão pôde passar por um “pecadilho” menor ou um “engate” desajeitado.
Os vigilantes dos costumes
pareceram mais empenhados em condenar hierarquias, do que em condenar
comportamentos: o problema parece apenas o facto de haver homens em posições de
poder. Percebe-se porquê: não é politicamente correto tocar na chamada
“libertação sexual” da década de 1960. Mas foi essa “libertação” que impôs o atual
regime em que o sexo é concebido, simultânea e paradoxalmente, como a expressão
mais profunda da personalidade, e como um divertimento inconsequente. Qualquer
ética, em relação ao sexo, passou a nunca poder ser mais do que uma
racionalização de inibições ou uma impostura. A “libertação sexual” dissipou
muitos escrúpulos e aliviou bastantes consciências – ainda hoje se fazem filmes
sobre isso –, mas também “libertou” muitos dos predadores. Convém recordar que,
em nome dessa “libertação”, a pedofilia chegou a ter defensores públicos nos anos 70.
A cultura sexual de hoje é
sensível ao igualitarismo. Mas de resto, convida-nos a encarar o pudor e a
contenção do passado com uma mistura de indignação e de sátira. Mas esse pudor
e contenção não decorriam apenas de obscurantismos bíblicos ou de pruridos
vitorianos, mas de antigas tradições humanistas que valorizavam o controle
sobre si próprio e sobre os seus próprios desejos, não como um meio de o
indivíduo se diminuir, mas como uma forma de realização pessoal. Não era só a
madre superiora, mas também Platão.
A alternativa do politicamente
correto, agora, é carregar escolas e profissões de polícias do “machismo”. Mas quem policia esses polícias,
uma vez que ninguém, nem mesmo campeões públicos do feminismo como Weinstein e
Stafford-Clark, parece estar acima de suspeita? Mais: que fazer, quando ninguém
parece saber exatamente onde estão as fronteiras? A “libertação sexual” não foi
o fim da história, como se vê pela confusão atual. Mostrar interesse já é
“assédio”? Quando é que “não” significa “não”? O que é “consensual”? Uma
relação em que uma mulher se conforma com o comércio sexual apenas para
promover a sua carreira de atriz – é consensual? Talvez fosse mais eficaz
associar novamente o sexo à responsabilidade, e não apenas ao hedonismo. Mas
para isso, teríamos de nos libertar de uma “libertação sexual” que fez do sexo
tudo e ao mesmo tempo nada, ao ponto de deixar passar toda a espécie de
equívocos e de violências.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
3-11-2017
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