Alberto Gonçalves
É ridículo supor que Lisboa é mais
provinciana que o resto do país: em matéria de provincianismo e atraso de vida,
é a cara chapada. Eça, que morava longe, fartou-se de o notar. Em 130 anos nada
mudou
A Grande Polémica dos últimos
tempos prendeu-se com a intervenção direta do “mayor” de Nova Iorque no
processo em que Cristiano Ronaldo requisitava um galinheiro perto da Trump
Tower, onde possui um apartamento e centenas de frangos. Após deliberar durante
meia hora, o município decidiu atribuir-lhe um terreno vizinho à taxa mensal de
vinte cêntimos por pé quadrado. Face às críticas de cidadãos anónimos e por
isso desprezíveis, todas em volta do mote “também quero um galinheiro barato
junto a casa”, o “mayor” explicou-se com mestria: a decisão não é uma “situação
de excepção” (ocasionalmente, se os particulares pedirem com jeitinho, a City Hall
dispensa-lhes pedaços da Quinta Avenida com propósitos avícolas). De resto,
cito, “é melhor do que os galináceos do sr. Ronaldo andarem à solta na rua, a
perturbar o trânsito e a higiene”.
Claro que é. E as vantagens
não terminam aí. Felizmente, mesmo entre a populaça, houve vozes sensatas, que
se lembraram de sublinhar os benefícios para Nova Iorque que as erráticas
estadias do sr. Ronaldo implicam. Nas suas páginas nas “redes sociais”,
frequentadas por dezenas de milhões, ele divulga lojas de bagels, quiosques de
pretzels, galerias do SoHo e praias de Long Island. Em consequência, no mundo
inteiro, gente que nunca ouvira falar de Manhattan e redondezas precipita-se
para lá às manadas a fim de imitar o estilo de vida do sr. Ronaldo. Além do
galinheiro, NYC deve-lhe uma estátua.
Por azar, no mundo real isto
não passa de ficção. Os factos prendem-se com a cedência, pela câmara de
Lisboa, de um vasto parque de estacionamento à cançonetista Madonna. O negócio,
a preços para aí de 1932, irritou inúmeras almas. E a irritação destas irritou
outras, que consideram a medida adequada à fama da cançonetista, a qual para
cúmulo faz publicidade a casas de fado, aos pastéis de nata, a Sintra e ao
Benfica. Ou seja, no mundo real a dona Madonna foi enxotada de uma mansão
próxima ao Central Park após os vizinhos se fartarem do barulho. Em Lisboa,
vê-se recebida de braços e pernas abertos. E, caso a senhora resolva guinchar,
de ouvidos fechados. A troco de quê? Parece que do “prestígio”.
Faz sentido. Jamais conheci
quem quisesse de borla um disco da dona Madonna: a que pretexto, que não o da
parolice mais radical, alguém haveria de querer pagar pela própria? Custa
desiludir os excitados, mas uma cidade que se sente valorizada pela presença de
uma “vedeta” não é bem uma cidade: é uma vítima da periferia, uma coisinha
remota e obscura, um ermo em suma. Não tenciono discutir se Lisboa é um ermo. A
questão é que alguns lisboetas, incluindo o sujeito que preside à autarquia,
julgam que sim. Pelos vistos, o impacto turístico de séculos de História,
patética ou heroica consoante a perspectiva, empalidece perante o “like” da
intérprete de “La Isla Bonita”.
Ao contrário do que sucede com
os poderes políticos e económicos, não pretendo concentrar-me na capital.
Acredito que idêntico grau de deslumbramento aconteceria se George Clooney
adquirisse uma quinta no Gerês ou os U2 montassem estúdio em Pombal. Ou, por
mero absurdo, se Obama passasse pelo Porto a dizer patetices e torcegar o
tráfego. É ridículo supor que Lisboa é mais provinciana que o resto do país: em
matéria de provincianismo, e atraso de vida, é a cara chapada. Eça, que morava
longe, fartou-se de o notar. O engraçado (“engraçado” não é a palavra exata) é
que, 130 anos depois, a lendária “identidade” não mudou. Nas últimas décadas,
entraram por aí “fundos”, tecnologia, carros, turistas, “startups”, o que
calhou. Os portugueses aproveitaram tudo, misturaram tudo, consumiram tudo e,
na essência, permaneceram isolados como antes. E pasmados como nunca.
Em suma, a nossa existência
carece da legitimação de terceiros. Uma “vedeta” facilita. Se não se arranja a
“vedeta”, qualquer estrangeiro anónimo serve: não deve haver lugar na Terra
onde os visitantes são interrogados com tanta frequência – e ansiedade – acerca
da opinião que têm de Portugal. Dado que os visitantes são geralmente
simpáticos e a opinião é geralmente positiva, os repórteres que os massacram
podem espalhar a aprovação com patriótico furor. E, após escutar atentamente os
louvores do sr. Hans Meier, contabilista de Zurique, sobre o bacalhau e o sol,
os portugueses podem concluir que são os maiores. E adormecer em paz, cheinhos
de medo de não serem nada.
Nota de rodapé
As três principais figuras do
Estado subiram a um palco para cantar a “Casinha” dos Xutos e Pontapés, e as
figuras que fizeram não se descrevem. Um deputado do PCP foi apanhado nas
consultas de um hospital privado, o representante exato de tudo o que o
comunismo combate. A passagem da “seleção” da bola pelo campeonato do sector
inspirou as habituais exibições de patriotismo, felizmente moderadas pela
eliminação sumária. A dívida pública alcançou novos recordes, justificando os
amplos louvores ao dr. Centeno. Muitos inimigos das touradas continuam a ser
mais repulsivos do que o repulsivo espetáculo que querem proibir, sendo
“proibir” a palavra-chave e o único desígnio dessa gente. O PSD juntou-se ao PS
para depositar o dr. Soares no Panteão, isto se os partidos ainda merecerem ser
citados separadamente. E houve a frota automóvel de Madonna em Lisboa e a ecologia,
alimentada a jato, de Obama no Porto. Tudo aconteceu na meia dúzia de dias em
que gozei férias. O país não tem férias, mas goza que se farta.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 8-7-2018
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