Aparecido Raimundo de Souza
CHEGA, BASTA. POREI um ponto final. Cansei de ficar aqui parado,
nesta calçada, ereto, feito um varapau, com os braços cheios de fios e, ainda
por cima, segurando uma lâmpada irritante e um baita transformador chato prá
burro, pesado com força, e “mais mau”, perto do coração. Não pensem que por eu
ser um simples poste de luz fincado numa rua de bairro de periferia, não tenha
coração.
Pois agora já sabem, eu tenho. E ele bate tanto quanto esse
que vocês carregam dentro do peito. Embora seja um ser aparentemente parado,
inanimado ou sem ânimo para o cotidiano da vida, não obstante feito de cimento
e areia é preciso que todos entendam, dou vida às coisas. Como os momentos
inesquecíveis, levo alegria às famílias e felicidade aos lares.
Não fosse por mim, a luz elétrica jamais chegaria até sua
morada. Quando uma pessoa aperta o interruptor, ou liga a tevê, o rádio, o
aparelho de som, ou o chuveiro quente, ou tudo isso junto, de uma vez só, lá
estou, ativo, enérgico, incansável, apressurado, levando o conforto, o
refrigério, o préstimo, a comodidade e o bem-estar. Para vocês terem noção, a
luminária que sustento disse estar de saco cheio de tanto brigar com uma das
braçadeiras que suporta o bocal da florescente.
Otário, como sempre, tentando apaziguar os ânimos, me meti na
contenda sem ser convidado. “Elas (as
braçadeiras) não têm sentimento – berrou o írico lampadário de iluminação
pública completamente fora de si”. Ao que o bocal asseverou, atarantado: “Por
ajudar a fazer clara a escuridão, se acha melhor que todo mundo... pois sim!”.
Voltando aos meus infortúnios, acreditem amigos, não é fácil.
Dias atrás, enfeitaram meu corpo com papeis de “Procura-se” com a foto de um
sujeito com feições manejadas. Manejadas, de Mané mesmo.
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Praia Grande, SP |
Um filho da mãe ladeado a mim encostou um pneu velho na minha
bunda com a inscrição “boraxeiro logu ale ha seim metrus”. Não ganho (e o Céu é
testemunha), nem um centavo para o café. Pior, nessa divina comédia humana, não
é aguentar Balzac ou as Paralelas de Belchior. Chato até dizer chega é suportar
calado, sem dizer um “ai”, os insuportáveis cachorros e as cadelas que se
achegam à minha beira (vindos de outras ruelas e becos) e com a maior
naturalidade, vê-los levantarem as patas e mijarem em mim (pasmem, em mim!) sem
a menor cerimônia ou constrangimento.
Quando não, partirem para fazer coisa pior. Aí (ao optarem
por essa coisa pior) é dose para elefante. Estou pensando, seriamente, junto
com outros colegas que comungam de igual infelicidade, fundar o Sindicato dos
Postes e, de roldão, o Serviço de Proteção aos Cilindros Verticais Desamparados.
Semana passada, quando me preparava para um cochilo, após o
almoço, um fusquinha com quatro elementos dentro veio para cima da calçada, a
toda velocidade. O vagabundo, ao volante, perdeu o controle da direção ao
passar pelo quebra mola. Pra lá de Bagdá, e não contente em atropelar uma
velhinha que seguia em direção ao supermercado, pimba, deu uma baita cacetada
justo na minha base. E mais: o desgraçado acertou, em cheio, meu calo de
estimação. Fiquei torto, meio curvo, irregular, de través, quase fui ao chão.
Faltou um tantinho assim...
Todavia, como sou feito de material de primeira, aguentei
firme o baque, a porrada. Poste que é poste com P maiúsculo, não perde a pose,
não dá o braço a torcer, não chora, nem entrega os pontos. Tenho, em minhas
veias, sangue de concreto de primeira. Mamãe se aposentou pela prefeitura, com
mais de noventa anos. Sem falar que (igual a ela, a mamãe), não atraio insetos
perniciosos. Se fosse de estirpe ruim, com o decorrer do tempo esses asquerosos
apareceriam para corroerem minhas entranhas.
Suporto sem bronquear, climas extremos e estou sempre em
forma, ainda que as condições meteorológicas não sejam favoráveis. O que mais
me deixa pê da vida é, sem dúvida alguma, a descamaradagem, a desolidariedade
dos parentes consanguineados próximos.
Quando o fusca me atropelou, não veio, em meu socorro, nenhum
irmão, nenhum tio, para saber se eu estava bem de saúde. Do mesmo modo, não deu
o ar da graça, viva alma, sequer um morador imediato saiu no portão ou na
janela para me acudir, ou para me subsidiar algum tipo de auxílio. Para me
levar ao hospital, para me dar assistência. Não é trágico?
Mais que isso, é humilhante, e vexatório. Só quem está no meu
lugar, parado dia e noite, vinte e quatro horas por dia, enfrentando as
intempéries sem comer, beber, descansar, dar uma namoradinha (estou gamado numa
linda Caixa de Barramento, duas casas abaixo) é que pode avaliar em justa
precisão como é ser um objeto, ou melhor, uma coisa que todo mundo precisa para
viver, mas que não lhe dá a mínima importância.
Agora, além de tudo, preciso aturar as piadinhas. Vejam se
isso não é de deixar qualquer um com os nervos em frangalhos. Definiram minha
pessoa como “um troço grande e cilíndrico de concreto que fica muito tempo no
mesmo lugar e, de repente, pula na frente de um carro dirigido por uma mulher”.
Posso com isso? Engraçado: as pessoas são estranhas – e, quando falo pessoas -,
generalizo todas. Elas não entendem, não sabem que tudo existe por uma razão
pré-estabelecida no universo de todas as coisas. Assim como há sempre um dia
atrás do outro, sei que o meu em breve chegará.
A minha hora de ser feliz alegre e saltitante, florescerá na
minha beira. E então, quando eu menos esperar... meu Pai Eterno, como sonho com
esses momentos! Nesses benfazejos, viajo como dizem os humanos, uns aos outros,
“na maionese”. Ah! Deixa ó Pai dos
Postes eu jornadear na manteiga das minhas quimeras, defluir como Ícaro em
busca do voo perfeito.
Como o Superboy, imaginar novos horizontes num abrir e fechar
dos olhos. Esquecer, por algum tempo,
minha triste vida de poste sofrido, repleto de cabos elétricos solitário, oco,
vazio, sem ninguém (tirando, logicamente, a esfuziante Caixa de Barramento a
qual alimento com energia dobrada), mercê unicamente de uma matilha de
vira-latas desatinados, quebrantando seus instintos mijais em meus pés,
deixando, em meus sapatos enterrados na calçada, o intrépido cheiro acre dos
alívios não merecidos de bexigas e colhões estufados do mais puro pipi.
Concordam comigo? Ainda bem que tenho alguns amigos. Poucos, mas sinceros. Isso
é o que faz toda a diferença.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. Do Aeroporto Internacional Santa Genoveva,
Goiânia, Goiás. 14-9-2018
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