Alberto Gonçalves
Achar que um produto é “arte” porque três
patetas o dizem ou porque se encontra exposto na Tate Modern é uma confissão
comovente de insegurança, de ignorância e de discutível equilíbrio mental.
Nasci em Matosinhos e vivi
sempre em Matosinhos, nas últimas décadas perto das praias de Leça da Palmeira.
Passo ali todos os dias e, apesar do farol da Boa Nova, de uma ETAR encantadora
e da ocasional cabeça decepada, tinha a sensação permanente de que a paisagem
estava incompleta. Faltava, parecia-me, uma obra escultórica arrojada, talvez
umas ferragens pintadas de branco e pousadas verticalmente no passeio,
alinhadas de modo a que, se cerrássemos muito os olhos ou padecêssemos de uma
miopia próxima da cegueira, julgaríamos estar em Manhattan. Já não falta.
Atenta, a câmara local
encomendou, por justificável ajuste direto, a obra em causa ao celebrado
artista Pedro Cabrita Reis. O sr. Cabrita Reis, vulto anafado que costuma
depositar tralha por vários chãos e que teve exposições chamadas “Um Olhar
Inquieto” e “Da Luz e do Espaço” (juro), aceitou a encomenda. Melhor ainda,
fê-lo a título praticamente gratuito, cobrando apenas o valor simbólico de 300
mil euros, fora 50 mil pelo transporte e instalação. E a câmara, leia-se o
munícipe a quem a câmara simpaticamente confisca rendimentos, pagou. Como tudo
isto se rege pela absoluta legalidade, não pagou ao sr. Cabrita Reis, mas à
Armazém 10, empresa detida pelo sr. Cabrita Reis, por familiares do sr. Cabrita
Reis, pelo comentador televisivo António Lobo Xavier e por mais uns portentos
avulsos. Em meados de dezembro, foi inaugurada a “Linha de Mar”, o belíssimo
nome das ferragens descarregadas em Leça. Nos finais de dezembro, a “Linha de
Mar” foi vandalizada.
Pela calada da noite (ou do
dia, não sei), indivíduos sem escrúpulos nem sensibilidade pintaram nas
ferragens as palavras “vergonha”, “os nossos impostos”, “política de merda” e
“300 mil euros”. Domingo último, o país acordou chocado, metade pelo ato
delinquente, metade pelos preços que os serralheiros praticam hoje em dia. A
autarca local, que sinceramente não sei quem é, assinou no Facebook um texto em
que defende a “responsabilidade do Estado” no “acesso da classe média e baixa”
[sic] à “cultura”. O sr. Cabrita Reis, homem de esquerda, fez uma pausa na
contagem das notas subtraídas à ralé para afirmar ao “Público” que o ataque ao
“conjunto escultórico” é uma “manifestação provocatória de arruaceiros de
extrema-direita”. Certo é que o incidente popularizou a peça e, num ápice,
instalou-se a tradicional discussão sobre arte contemporânea, que opõe os
filisteus que não a compreendem aos que temem ser tomados por filisteus e
fingem compreendê-la.
Com jeito, algum destes
complexados terá lembrado que a “Sagração da Primavera” inspirou motins em
Paris – argumento que permite equiparar a Stravinsky o incontinente que baixa
as calças no meio do Museu Berardo. Dado não sofrer dessas maleitas, não me
meto na discussão.
É evidente que o sr. Cabrita
Reis só é artista na medida em que ele se declara assim e em que existe um “meio”
de oportunistas, compinchas ou pasmados que lhe corrobora a opinião. E é
evidente que o sr. Cabrita Reis é um mero exemplo entre muitos “artistas” que
despejam quinquilharia na praia de Leça, nas rotundas do nosso belo país e nos
museus especializados deste mundo.
Achar que um produto é “arte”
porque três patetas o dizem ou porque se encontra exposto na Tate Modern é uma
confissão comovente de insegurança, de ignorância e, no limite, de discutível
equilíbrio mental.
Exceto para os ociosos, o
“debate” sobre a fraude deliberada a que se resume boa parte da arte
contemporânea terminou em 1961, quando o italiano Piero Manzoni encheu 90 latas
alegadamente com os próprios excrementos a título “conceptual” (ainda há latas,
ao que parece cheias de gesso, no MOMA, no Pompidou e, claro, na Tate). Para os
crédulos terminais, a trafulhice deveria ter terminado com Pierre Brassau.
Brassau era um pintor da escola do expressionismo abstrato, que em 1964 expôs
numa galeria de Gotemburgo sob o entusiasmo da generalidade dos críticos.
Sucede que Brassau era o pseudônimo de um chimpanzé chamado Peter, e o
protagonista de um embuste perpetrado, e depois revelado, por um jornalista
sueco. Apanhados em flagrante, os críticos assobiaram para o lado e
prosseguiram as carreiras a exaltar novos génios da criatividade.
Não quero sugerir que as
pinturas de Brassau são comparáveis à “Linha de Mar” do sr. Cabrita Reis: o
chimpanzé tinha uns vestígios de talento e, pelo menos, esforçou-se. No caso do
entulho de Leça da Palmeira ninguém se esforçou e ninguém disfarçou a real
natureza do exercício. O exercício entra pelos olhos dentro, tão grotesco
quanto as ferragens do sr. Cabrita Reis. Para evitar tribunais e maçadas afins,
não vou elaborar. Não é preciso. Qualquer um percebe o que aconteceu ali, e
percebe que o que aconteceu ali é o mesmo que acontece regularmente em inúmeros
cantinhos de Portugal. O episódio representa a essência do celebrado “poder
local”.
E o “poder local”, talvez com
ressalvas que desconheço, é isto, um pretexto para burgessos com manha viverem
à custa de burgessos sem ela (a “classe média e baixa”) e de caminho
alimentarem os partidos que inventam tais espécimes. O sr. Cabrita Reis e os
seus pares estão longe de ser os únicos artistas desta história.
Entretanto, cumpre-me informar
que, espantosamente para uma autarquia que demora anos a remendar um buraco na
rua, os rabiscos nas ferragens foram limpos no dia seguinte. O lixo, porém,
continua lá.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
4-1-2020
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Grande e corajoso artigo, lixo aos contentores e gozar com os estúpidos e os menos estúpidos, é esta e toda a obra do Cabrita.
ResponderExcluirEste retorno ao passado vem da recente obra das três graças (3 GRAÇAS) sem graça nenhuma. Assim vai a cultura dos elitistas e inteligentes em País de cegos.