sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Alexandria, 2026

Numa operação comandada pelo Xerife Xerxes Xande, a antiga Polícia Federal fechou o cerco a empresários golpistas que foram vistos num vestiário da academia falando mal do governo

Rodrigo Constantino

O imperador Saltitante acordou de mau humor, e, com sua voz fina e metálica, berrou: “Gleice, venha já aqui!”. Sua secretária saiu correndo do aposento ao lado e perguntou o que seu mestre desejava. “Traga-me já um copo de água com açúcar, mulher imprestável! Preciso me acalmar após ler essa notícia absurda!” Saltitante se referia a uma manchete da Revista Leste, a única sobrevivente no país após a revolução democrática de 2022. Ela dizia: “Último foco da militância fascista consegue escapar da polícia”.

Numa operação comandada pelo Xerife Xerxes Xande, também conhecido como XXX, a antiga Polícia Federal fechou o cerco a empresários golpistas que foram vistos num vestiário da academia falando mal do governo. Pela nova Lei de Liberdade de Expressão, criada por decreto pela Junta Democrática do Foro de SP, estava terminantemente proibido criticar o governo, em especial o Imperador Saltitante e o Xerife Xerxes.

A mudança que permitiu isso veio por emenda constitucional e havia retirado uma única letra no texto de 1988: Todo o poder emana do Ovo, e não mais do Povo. Ovo era o apelido carinhoso de Xerxes, devido à sua cabeça careca e reluzente. Era ele quem dava as ordens na prática, enquanto o Imperador Saltitante se portava como uma espécie de Rainha da Inglaterra — e ele adorava a parte das vestimentas inspiradas em Elizabeth.

Desde quando aquele fascista cujo nome não mais pode ser mencionado venceu as eleições em 2022, apesar de todo o esforço democrático da oposição, houve uma união apoiada pelo Exército Chinês para restabelecer a democracia no país. Xerxes demitiu os demais dez ministros e passou a representar, sozinho, a Corte Constitucional. O então senador Saltitante foi proclamado imperador do Brazinil, e todos os apoiadores do fascista eleito foram perseguidos, muitos deles presos ou expulsos do país.

O respeitado jurista Miguel Retalho Junior, após a prisão de seu colega Ives Grande Martinho, foi às emissoras de televisão atestar a legalidade do ato, já que para derrotar a ameaça fascista tudo era aceitável e desejável. Brazinil mudou até de nome e passou a ser chamar Alexandria, em homenagem ao Xerife que tanto fez para impedir o golpe. Agora havia pouquíssimos focos de resistência, já que a Polícia Unificada de Todos os Amigos (PUTA) tinha lançado uma implacável busca pelos golpistas, com auxílio de soldados democratas enviados por Cuba e Venezuela.

Naquela manhã quente de janeiro de 2026, Saltitante se deparou com a notícia da Revista Leste sobre a fuga dos empresários fascistas. Isso despertou sua revolta: “Duvido que algo assim acontecesse na democrática Coreia do Norte, ou com nossos companheiros da Nicarágua! Lá todos os fascistas cristãos foram devidamente presos!”, esbravejava.

Tensa com a situação, e com medo das broncas, Gleice decidiu ligar para o verdadeiro chefe da coisa toda: “Luísque, acho melhor você abandonar Atibaia rapidinho só para vir aqui colocar um pouco de ordem na bagunça”. Já bêbado após a quinta taça de Petrus, Luísque rebateu: “Não enche o saco, Gleice. Eu fiz meu papel em 2022 e desde então quero só aproveitar minha vida de longe, com meus milhões e minha mulher, Granja. Vocês que são democratas que se entendam!”.

Esse que vos escreve só teve condições de relatar essa história toda pois morava fora de Brazinil na época da revolução democrática

Claramente decepcionada, Gleice convocou então Miguel Tremer, o único capaz de acalmar Xerxes, o que por sua vez acalmava Saltitante, que no fundo estava apavorado com o provável esporro do chefe. Tremer ligou para Xerxes, falou amenidades antes, lembrou quem o indicou ao Supremo, e com jeitinho deu o recado: “Meu ilustre Ovo, vossa excelência não acha que já fizemos o suficiente para impedir golpes fascistas? Talvez possamos deixar passar um ou outro empresário conspirador, pois são inofensivos hoje…”.

Xerxes ficou vermelho de raiva, e, com o olhar vidrado, rebateu: “Cala a boca, seu Mordomo inútil! Alexandria não terá um só crítico do governo, e não vou descansar até punir pessoalmente um a um desses miseráveis! Você nunca teve a garra de um Luísque, por isso conspirou contra ele! Não podemos permitir um só fio desencapado, pois de 1 centímetro pode surgir um curto-circuito e produzir um grande incêndio. Para ser uma democracia de verdade, como nossos companheiros conseguiram fazer na Venezuela e na Nicarágua, é fundamental ser intransigente com qualquer deslize ou malfeito. Não me liga mais, seu pusilânime de uma figa!”.

Tremer, com o perdão do trocadilho, passou a tremer de medo, e se lembrou de velhas máximas: quem planta vento colhe tempestade; quem alimenta corvos tem seus olhos arrancados; quem dá comida para o Gizmo depois da meia-noite precisa enfrentar os Gremlins — ok, isso não é bem uma máxima, mas uma lição com base num filme que entrega a idade do autor.

E assim a vida seguiu em Alexandria. Esse que vos escreve só teve condições de relatar essa história toda pois morava fora de Brazinil na época da revolução democrática. Havia inclusive um prêmio por minha cabeça, mas fui prudente e nem arrisquei uma visita sequer. Criado em ambiente fascista, e vivendo em local ainda mais fascista como Miami, confesso com toda a humildade do mundo que nunca fui talhado para viver em uma democracia tão alexandrina assim!

Título e Texto: Rodrigo Constantino, Revista Oeste, nº 128, 2-9-2022

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