Em 2024, com jeito, inúmeros pensionistas já faleceram. E se a população ativa nem assim se satisfaz, que emigre para ver como elas mordem na Moldávia.
Alberto Gonçalves
Os portugueses queixam-se de quê? Ganham, por enquanto, o 23º melhor salário médio da Europa, bem acima dos habitantes do Kosovo e da Moldávia, coitados. Para cúmulo, exibem o 28º maior poder de compra de todo o continente, é verdade que aquém da Roménia e do Chipre, mas um pedacinho além do Montenegro e a milhas do Cazaquistão, pobrezitos. Não admira. Por cá, a inflação está só meio pontinho percentual acima da média da Zona Euro, que rondou em agosto uns reles 9,1%. A propósito, desde o início do ano que só em 16 membros da mencionada Zona o preço dos alimentos aumentou menos que em Portugal. E, salvo os restantes 26, também somos o país da UE em que os índices de pobreza aumentaram menos: sublinhar os 2,3 milhões de pobres é uma atitude populista e que visa esquecer os 7 milhões e tal de remediados ou francamente ricos.
Os nossos privilégios não têm
fim. Graças a taxas que não excedem os 60% do preço final, e apesar da natural
ganância das gasolineiras, o gasóleo, da última vez que vi, era para aí o 35º
mais barato da Europa (e a gasolina a 37ª). E não promete piorar muito. Para
cúmulo, somos o 23º país da UE com menos impostos na hora de comprar um carro,
e nem vale a pena falar no pouquíssimo que custa mantê-lo. De resto, o
automóvel particular é apenas uma opção, felizmente em desuso. Boa parte de
algumas cidades de certas regiões do litoral dispõem de uma excepcional rede de
transportes públicos, os quais, se não estiverem em greve ou avariados,
funcionam impecavelmente. E não preciso recordar a invejável e pertinente rede
de ciclovias.
A habitação? Não me façam falar da habitação. Até ver, a subida do preço das casas nunca chegou aos três dígitos. E, embora não haja dados explícitos (não interessa aos estrangeiros que estas coisas se divulguem), acredito que uma moradia geminada na Moita continua a ser um pedaço menos dispendiosa que uma “penthouse” em Berlim ou Paris. O agravamento das prestações, decorrente das taxas de juro a cargo do BCE que o exemplar governo tenta contrariar com generosidade, dificilmente ultrapassará as centenas de euros mensais. E refiro-me a apartamentos de gabarito, estilo T2 e tal. Não acredito na subida vertiginosa da prestação de um óptimo estúdio com 35 m2 em Cabeceiras de Basto. E um estúdio que estará quentinho no Inverno: a eletricidade é a 30ª mais barata da Europa. O gás natural, suponho, idem. E um cobertor polar, acabei de constatar, compra-se por 8€ em loja da especialidade.
Que mais querem? Como se as
benesses não fossem bastantes, o governo admite eventuais dificuldades e tira
do próprio bolso uma substancial ajuda para que os cidadãos, os que não são
bilionários e auferem 2700 euros, possam enfrentar algum imprevisto. São dois
mil milhões, quase metade do que se investiu – e bem – na TAP, quase um terço
do acréscimo em receita fiscal que, por causa da inflação, o Estado arrecadou –
e bem – no primeiro semestre do ano. Em outubro, que está à porta, os
pensionistas receberão pensão e meia, a classe trabalhadora receberá 125 euros
para esbanjar no que lhe apetecer. Somente a má-fé pode lembrar que, assentada
a poeira dos cálculos, os primeiros vão perder 200, 400 ou 600 euros por ano a
partir de 2024, e que 125 euros é uma fracção do que o fisco arranca
regularmente aos segundos. Em 2024, com jeito, inúmeros pensionistas já
faleceram. E se a população ativa nem assim se satisfaz, que emigre para ver
como elas mordem na Moldávia.
Para lá de traírem a pátria,
os que emigrarem mostram imprudência. Esta semana, os profetas da desgraça, que
teimavam na falência da segurança social, foram informados de que as reformas
do futuro rondarão os 40%, quiçá 50% dos últimos salários. Alguém arrisca
perder tamanho maná? E ninguém, de perfeito juízo, abandonará o melhor SNS do
mundo, dado que as urgências fechadas neste ou naquele hospital não comprometem
as que permanecem abertas. Nem o melhor sistema educativo do mundo, o que se
comprova pela irrisória quantidade de alunos que reprovam e pela quantidade de
professores que, apesar de insuficientes, ainda existem. Nem os melhores lares
de idosos do mundo, logo que não haja feridas abertas e formigas. Nem os
melhores estudos do mundo para o melhor novo aeroporto de Lisboa do mundo. Nem
o melhor clima, a melhor comida, o melhor vinho, as melhores feiras medievais,
as melhores rotundas e as melhores alucinações do mundo.
Nem, sejamos francos, o melhor
governo. Nisso, não há dúvida de que tivemos sorte, aliada ao mérito dos que,
na hora do voto, escolheram com sensatez. Liderado por um estadista de dimensão
rara, e composto por personalidades da confiança do estadista e do ISCTE, é um
governo que não mente ao povo exceto sempre que os factos arriscam promover a
instabilidade política e social. Um governo que vai penalizar os lucros
excessivos das empresas – quais? – que ousam desgostar do prejuízo. Um governo
que assegura a “transição energética” e a “transição digital”. Um governo que
prescreve a “convergência”, nem que seja com a Nicarágua. Um governo que
batalha pela igualdade de “género” e do que calha nas Forças Armadas e onde
calha. Um governo que bloqueia o avanço da “extrema-direita”. Um governo que
garante a carga fiscal e a justiça redistributiva. Um governo que sabe o que
quer e que sabe o que é preferível nós querermos. Em suma, um governo que dá
esperança.
Não significa isto que, no
limite, os portugueses não se vejam forçados a refrear ligeiramente a vida de
abundância que levam desde que o PS virou a página da austeridade. Caramba:
houve a pandemia e há a guerra. Na pandemia, um vírus danado encerrou sozinho
comércios, indústrias, blocos operatórios e as áreas dos supermercados
destinadas a livros e brinquedos. A guerra explica as chatices que sobram. E
nem invoco as alterações climáticas, essas bandidas. Temos de aceitar a
realidade. Não temos de comer todos os dias. Mas importa agradecer, sobretudo
ao dr. Costa, os dias em que comemos.
Os portugueses queixam-se de
quê? De nada. Aliás, os portugueses não se queixam. Perante a imensa miséria
que nos espera, isso é notável, para não dizer doentio. E para não dizer
desumano.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
24-9-2022, 0h21
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-