Carina Bratt
EM SÃO PAULO, pessoas de
todas as idades, fantasmas iracundos, de feições indescritíveis, caminham de um
lado para outro, sem destino lógico. É a vida se despedaçando numa
desintegração sem volta, sem retorno e sem talvez. Menciono aqui
especificamente, a eterna Cracolândia, perto da Estação da Luz, ou mais
especificamente na Duque de Caxias, na Rua Mauá, na Estação Júlio Prestes e
etc. Por ali, crianças de doze anos, de quinze, e até da minha idade, morrem
diariamente tentando escalar as vielas sombrias e os becos escuros de toda a
região que ela abrange. Foto: Danilo Verpa/Folhapress
Dentro de mim, eu tenho uma Cracolândia. A minha, apesar do nome, tem
outra cara, outra personalidade, outra forma de existência. É boa, auspiciosa e
acolhedora. Não tem gente morrendo, não tem gente fumando, nem bebendo ou se
drogando. Na minha Cracolândia, a vida flui por caminhos de claridade intensa e
o céu infinito tem sempre um azul bonito bailando por sobre a minha cabeça. A
minha Cracolândia é benigna, acolhedora, está sempre com seus acessos abertos
para quem tem a alma em festa constante. Por essa razão, sempre que estou sem
fazer nada, escalo, em pensamento meu próprio Everest interior.
Não aquele famoso Everest da Cordilheira do Himalaia. Faço referência ao
outro, ou o que construí dentro de mim mesma. Quando não estou nele, me
contento viajando no bondinho do Pão de Açúcar. Da varanda do apartamento na
Borges de Medeiros, na Lagoa, ao olhar para o morro em frente do prédio, deu de
cara com o Cristo de braços abertos abençoando a cidade. Quando quero estar
literalmente mais perto D’Ele, vou até o cimo da montanha, via Cosme Velho e
aproveito para me deleitar com as maravilhas do caminho até a derradeira
estação bem lá no ápice (1).
Aos pés do Homem de Nazaré, me encanto e me extasio contemplando toda a cidade lá embaixo. Meu peito se abre como um pequeno santuário em prece de agradecimento e o meu coração salta, boca afora, alegre e em blandícias (2) de afogueamentos indescritíveis. Estou sempre assim: feliz, radiante, próspera, venturosa, lépida, o corpo inteiro beatificado por uma paz acolhedora e incomensurável.
No meu lugar e na minha idade, comparando as pessoas, melhor dito, aos
seres humanos, os que vivem aos reveses da sorte, os que morrem um pouco a cada
minuto, a cada segundo do dia, nas vielas e becos da Cracolândia de São Paulo,
quantas criaturas não estariam, nesse exato momento propensas a praticarem o
seppuku? (3).
O que me entristece a alma, o que escurece as minhas vistas, usque (4) me
deixa boquiaberta e sem saída, sem eira nem beira, é olhar longamente para
esses milhares de vermes que aí estão, como larvas saídas de bueiros, e se
espalhando como micróbios repletos de doenças malignas pelas artérias das
cidades, distribuindo santinhos, propagandas enganosas, abrindo seus focinhos
em falsos sorrisos e promessas, à cata de votos.
Pior, em busca cega pelo poder, farejando dias melhores para seus
familiares, enquanto uma cidade adormecida dentro de uma metrópole maior, pede
socorro e morre lentamente por falta de recursos de homens e mulheres, os
vigaristas e vilões, os enganadores e estelionatários que visam somente o
status de um cargo público para benefícios próprios e, certamente de seus
apaniguados.
Bem sabemos, todas nós, mulheres de visão plena, temos consciência que
ninguém mudará coisa alguma. Seja o país, o senado, a câmara, o STF... a
Cracolândia amigas, vai continuar se alastrando mais e mais numa matemática
cada vez horrivelmente crescente em números e somas vultuosas que nunca baterão
com a realidade em que vivemos. Crianças seguirão reféns, sugadas, envolvidas
espancadas e assediadas aos descaminhos das desgraças e infortúnios, flagelos e
tribulações cada vez maiores e degradantes. Onde, o futuro, o amanhã, o AGORA,
JAMAIS CHEGARÁ.
Notas de rodapé:
1) Ápice – O ponto mais alto de um determinado lugar.
2) Blandícias – Outra maneira de expressar afagos e ternuras.
3) Seppuku – Ritual japonês de suicídio.
4) Usque – Até onde, ou até o fim.
Título e Texto: Carina
Bratt. De Vila Velha, no Espírito
Santo. 18-09-2022
Como se de repente a gente desse um clic...
Tudo
Nada
Assunto mais sério que guri cagado
Tudo é questão de não deixar passar os bons momentos
Escarcéu de uma louca quase à deriva de si mesma
Às vezes, quando não existo no meu mundo...
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