domingo, 18 de setembro de 2022

[As danações de Carina] Os nossos antípodas estão por aí, como um amontoado de lixo

Carina Bratt

EM SÃO PAULO, pessoas de todas as idades, fantasmas iracundos, de feições indescritíveis, caminham de um lado para outro, sem destino lógico. É a vida se despedaçando numa desintegração sem volta, sem retorno e sem talvez. Menciono aqui especificamente, a eterna Cracolândia, perto da Estação da Luz, ou mais especificamente na Duque de Caxias, na Rua Mauá, na Estação Júlio Prestes e etc. Por ali, crianças de doze anos, de quinze, e até da minha idade, morrem diariamente tentando escalar as vielas sombrias e os becos escuros de toda a região que ela abrange. 

Foto: Danilo Verpa/Folhapress

Dentro de mim, eu tenho uma Cracolândia. A minha, apesar do nome, tem outra cara, outra personalidade, outra forma de existência. É boa, auspiciosa e acolhedora. Não tem gente morrendo, não tem gente fumando, nem bebendo ou se drogando. Na minha Cracolândia, a vida flui por caminhos de claridade intensa e o céu infinito tem sempre um azul bonito bailando por sobre a minha cabeça. A minha Cracolândia é benigna, acolhedora, está sempre com seus acessos abertos para quem tem a alma em festa constante. Por essa razão, sempre que estou sem fazer nada, escalo, em pensamento meu próprio Everest interior.

Não aquele famoso Everest da Cordilheira do Himalaia. Faço referência ao outro, ou o que construí dentro de mim mesma. Quando não estou nele, me contento viajando no bondinho do Pão de Açúcar. Da varanda do apartamento na Borges de Medeiros, na Lagoa, ao olhar para o morro em frente do prédio, deu de cara com o Cristo de braços abertos abençoando a cidade. Quando quero estar literalmente mais perto D’Ele, vou até o cimo da montanha, via Cosme Velho e aproveito para me deleitar com as maravilhas do caminho até a derradeira estação bem lá no ápice (1).

Aos pés do Homem de Nazaré, me encanto e me extasio contemplando toda a cidade lá embaixo. Meu peito se abre como um pequeno santuário em prece de agradecimento e o meu coração salta, boca afora, alegre e em blandícias (2) de afogueamentos indescritíveis. Estou sempre assim: feliz, radiante, próspera, venturosa, lépida, o corpo inteiro beatificado por uma paz acolhedora e incomensurável. 

No meu lugar e na minha idade, comparando as pessoas, melhor dito, aos seres humanos, os que vivem aos reveses da sorte, os que morrem um pouco a cada minuto, a cada segundo do dia, nas vielas e becos da Cracolândia de São Paulo, quantas criaturas não estariam, nesse exato momento propensas a praticarem o seppuku? (3).

O que me entristece a alma, o que escurece as minhas vistas, usque (4) me deixa boquiaberta e sem saída, sem eira nem beira, é olhar longamente para esses milhares de vermes que aí estão, como larvas saídas de bueiros, e se espalhando como micróbios repletos de doenças malignas pelas artérias das cidades, distribuindo santinhos, propagandas enganosas, abrindo seus focinhos em falsos sorrisos e promessas, à cata de votos. 

Pior, em busca cega pelo poder, farejando dias melhores para seus familiares, enquanto uma cidade adormecida dentro de uma metrópole maior, pede socorro e morre lentamente por falta de recursos de homens e mulheres, os vigaristas e vilões, os enganadores e estelionatários que visam somente o status de um cargo público para benefícios próprios e, certamente de seus apaniguados.

Bem sabemos, todas nós, mulheres de visão plena, temos consciência que ninguém mudará coisa alguma. Seja o país, o senado, a câmara, o STF... a Cracolândia amigas, vai continuar se alastrando mais e mais numa matemática cada vez horrivelmente crescente em números e somas vultuosas que nunca baterão com a realidade em que vivemos. Crianças seguirão reféns, sugadas, envolvidas espancadas e assediadas aos descaminhos das desgraças e infortúnios, flagelos e tribulações cada vez maiores e degradantes. Onde, o futuro, o amanhã, o AGORA, JAMAIS CHEGARÁ.

Notas de rodapé:

1) Ápice – O ponto mais alto de um determinado lugar. 

2) Blandícias – Outra maneira de expressar afagos e ternuras.

3) Seppuku – Ritual japonês de suicídio.

4) Usque – Até onde, ou até o fim.   

Título e Texto: Carina Bratt. De Vila Velha, no Espírito Santo. 18-09-2022          

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