domingo, 14 de agosto de 2022

[As danações de Carina] Tudo é questão de não deixar passar os bons momentos

Carina Bratt 

DEPOIS DE CERTO TEMPO, a gente descobre que dentro de nós existe uma ‘Caixinha Secreta’. Ela está ocultada num compartimento quase desconhecido e de acesso complicado. Tão custoso e abrolhado, que muitas vezes partimos daqui sem darmos conta de que o tempo todo ela estava ali, de frente para os nossos olhos, atropelando nossos passos e sequer, em face dos afazeres e das correrias do dia a dia esquecemos de parar um pouquinho e dedicar um dedinho de atenção. 

Apesar de saber da sua existência, confesso, nunca me preocupei em chegar até o seu recôndito. Talvez por medo, receosa de dar com os burros n’água, ou, do não esperado, reavivar coisas guardadas que, se encontradas, poderiam me trazer dissabores adormecidos e tristezas inoportunas que careciam de permanecer enterradas. Ou por outra, visto por ótica mais amena, quem sabe, me despertassem recordações de um vasto leque de coisas boas e atrativas que, vindas à tona, eu me repaginaria. Todavia, por pura cegueira, me desleixei impedida. 

Ou seja, escrito de forma mais abrangente, por um vacilo abestalhado, me obstei não oportunizando o passado, e pior, evocando instantes que, de alguma forma, restituiriam a minha autoestima e me fariam estimulada e avivada, acendida por inteira. Via de consequência, me contemplaria um pouco mais livre, leve e solta e o melhor de tudo, ficaria em paz comigo mesma. Juro que pensei em tudo. Mil vezes.  Impaciente, repensei outras tantas e decidi: chega. Basta. Hoje, custe o que custar, seja a que sacrifício for, encontrarei a minha ‘Caixinha Secreta’.  

Havia um derradeiro ponto a ser revisto meticulosamente. E se tal ‘Caixinha’ fosse apenas obra fantasiosa da minha louca e alucinada imaginação? Optei, pelo ‘dane-se’ e me embrenhei pelas sendas de velhos ditados dos tempos de meu falecido pai. Ele apregoava, em alto e bom som: ‘Quem não mama, é porque não chorou’; ‘Quem não arrisca, não petisca’; ‘Jacaré que fica parado, vira bolsa de madame’. Por conta de tais ditos, entre permanecer estática e virar bolsas ou carteiras em vitrines de lojas de shopping, resolvi deixar de lado a historinha da ‘Cobra venenosa que, certa vez, ao ser mordida por uma linguiça suína, passou a ter um medo mórbido de porco esfomeado’. 

Parti em busca da aventura. Uma proeza ao acaso, vez em quando, faz bem. No meu caso, achar o latíbulo da auspiciosa ‘Caixinha’. Se quebrasse a fuça, saísse escoriada, arranhada, ou ‘agatanhadurada’, paciência. ‘Pássaro que não voa, não engole os ares das paisagens encantadoras’. Mesmo plano, ‘avião que não bate asas, fica refém de aeroporto de periferia’. Entre beliscões e dentadas, vou daqui passo dali me escorrego acolá, caio, me levanto, embora siga sem pressa, tendo em conta que ‘a afobação faz com que se coma o alimento cru’, eis que diante das minhas inquietações e sobressaltos, alvoroços e tempestades, deparei, extasiada e boquiaberta, com a ‘Caixinha Secreta’. 

Raios! Estava, a ‘coisinha fofa’ e meiga, dentro de mim, justaposta ao lado do meu peito. Bastou meia dúzia de introspecções atreladas ao mantra eficaz do exercício incansável do ‘eu vou achar’, ‘eu vou encontrar’, ‘eu posso’, ‘eu quero’ ‘eu consigo’, repetido trocentas vezes, multiplicado por sete vezes sete, o ‘Receptáculo’ me sorriu, não como o vira lata enternecido do Roberto Carlos, ao vê-lo parado no portão de casa.  Foi o encontro mais profundo e ingente, vasto e arraigado, tipo assim, como uma recompensa inesperada e sutil, uma dádiva repletada de coisas boas, recheadas de registros alentados dos meus tempos de mocinha. 

Memórias de ‘Meu Velho’, ainda em pleno vigor da vida, de ‘Mamãe’ saltitante com seu sorriso franco e aberto; meus primeiros madrigais dos cafundós da escola pública... depois do ginásio, das viagens e mudanças de lugares os mais diversos em face da profissão de meu pai, sem tocar nas lembranças que se juntaram aos borbotões com o decorrer dos meus janeiros vividos. Aos poucos, me peguei enamorada, maravilhada, fascinada com o que estava adormecido dentro da ‘Caixinha’. 

Vou sendo, em tempo paralelo, acolhida, como se abraçada pelo ‘Tempo-ontem’ que se esvaiu sorrateiro, e em lágrimas abaladíssimas pelo reencontro com o ‘Agora’, se remoçou, e ao tempo em que se vitalizou, me seduziu, me entalou a alma numa avigoração retemperada de presságios refocilados e imorredouros. Aqui estão, dentro da ‘Caixinha Secreta’, beijos, frases de amores não ditas, desilusões e tristezas, desenganos e logros, Felicidades e Lembranças... retratos, velhos livros, discos setenta e oito rotações, de tudo um bocadinho que marcou os meus primórdios.   

A partir de agora, manterei a ‘Caixinha Secreta’ dentro de meu coração. Sempre que me sentir próxima de algum infortúnio, deixarei a minha vida vestida de preto lá fora, no meio da rua. Ela que vá fazer barretadas em outra freguesia. Sozinha, comigo mesma, pegarei da varanda do meu apê uma carona por estrelas travessas. Me embrenharei como se possuída pelo pensamento ‘Sonen’ (1). Com ele, e através dele, viajarei bela e formosa por nuvens filantrópicas e me engalanarei com a Face do ‘Deus Maior’ sorrindo, brejeira e dona de mim.  

O Espírito do Altíssimo está pressuroso dentro de meu ser. E certamente se faz presente dentro de cada uma de vocês. Basta termos tempo e disposição, discernimento e coragem, para encontrá-lo. Como eu, à ‘Caixinha Secreta’. O nosso problema, minhas queridas amigas e leitoras, às vezes se constitui num só: o mundo em que vivemos, é bom e acolhedor. Nós é que fazemos dele, com as nossas ações, um ‘Paraíso, um Inferno ou um Purgatório’, como naquele poema de viés épico e teológico escrito por Dante Alighieri nos idos do século XIV. Se usarmos a cabeça, concluiremos que o ‘Lugar-mundo’ congestionado e infame em que padecemos os ossos, simplesmente NÃO EXISTE. 

Nota de rodapé: (1) ‘Sonen’. Palavra japonesa que significa ‘Pensamento’. O sentido, como um todo, não se limita ao ato de pensar racionalmente. Seu significado abrange o sentimento, a vontade e vai além da razão.   

Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 14-8-2022

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