Disseram que estavam fazendo uma manifestação em favor da “democracia”; era um evento em favor da candidatura Lula, e atraiu o mesmo público que atraem os comícios do ex-presidente
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Freepik
J. R. Guzzo
Deveria ser, pelo que
garantiam os formadores de opinião, os grão-duques da “análise política” e os
peritos em nos dizer o que o povo está pensando a cada minuto, um momento
decisivo na história das “lutas populares” neste país — a hora em que as
massas, a uma só voz, se levantariam em defesa do ministro Alexandre de Moraes,
das urnas eletrônicas e da volta de Lula à Presidência da República. Acabou
sendo, no mundo dos fatos concretos, apenas mais um daqueles arranques penosos
de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues — uma coisa sem graça, sem
vigor e sem esperança. Chegaram a dizer, num surto de empolgação, que desta vez
“o Bolsonaro” tinha ido longe demais com seus “ataques” ao sistema de apuração
das eleições; desafiou a “sociedade civil”, e com a “sociedade civil” não se
brinca. A resposta do povo seria a manifestação monumental em frente à
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, no dia 11 de
agosto, para a leitura da “Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia”. No
fim, foi um fracasso miserável.
A manifestação de massa não
tinha massa; não chegou a ocupar nem o modesto Largo de São Francisco, onde já
não cabe muita gente, e ainda menos qualquer das ruas vizinhas. Não havia um
único trabalhador de verdade para representar a classe operária. Nos muros da
faculdade eram exibidos cartazes de protesto contra a “fome” e o “racismo”. Os
peixes gordos foram admitidos dentro do prédio — as caras mais conhecidas, os
advogados penais que cobram caro para defender ladrão, os empresários
socialistas e mais do mesmo. O resto ficou de fora, no frio e na chuvinha.
“Voltei pessimista do Largo de São Francisco”, lamentou uma personalidade das
classes culturais anti-Bolsonaro presentes no evento. “Pouquíssima gente,
pouquíssimos jovens, os mesmos intelectuais de ideias mofadas de sempre, zero
vibração.” Foi um resumo realista — em contraste com a visão geral da mídia,
que continuou fiel à crença de que a carta “em defesa da democracia” tinha sido
uma segunda chegada do homem à lua.
O
Brasil, para dar um exemplo, tem 156 milhões de eleitores; a “carta” representa
uns 0,2% disso
A carta, segundo disse no ar
uma jornalista da televisão, teve 300 e tantas mil assinaturas, o que lhe
pareceu algo francamente excepcional, pelo seu tom de voz, a ênfase em anunciar
cada algarismo da cifra e o semblante de espanto diante do que lhe pareceu a
imensidão do número anunciado. (Pelo menos uma das assinaturas, a do empresário
Paulo Skaf, foi falsificada. Será que foi só uma?) E daí, se foram mesmo essas
300.000? Não é nada de mais — é apenas, de novo, a velha dificuldade da
imprensa para lidar com elementos rudimentares do senso de proporção. O Brasil,
para dar um exemplo, tem 156 milhões de eleitores; a “carta” representa uns
0,2% disso. O abaixo-assinado pedindo para o Senado julgar o impeachment do
ministro Moraes já tem 3 milhões de assinaturas, ou dez vezes mais — e por aí
vamos, na permanente operação de retirada que o jornalismo nacional executa
sempre que encontra números pela frente. É o mesmo estado de espírito que leva
às manifestações de negacionismo diante da queda no preço dos combustíveis.
Outra jornalista, também da
televisão, nos garante que a gasolina mais barata só interessa aos ricos —
porque, pelo que deu para entender, só os ricos possuem carros que gastam muita
gasolina. É como se a frota brasileira fosse formada apenas por SUVs Cayenne de
R$ 1 milhão a unidade — e como se os milionários que possuem esses aviões
estivessem angustiados com o que gastam para encher o tanque. Mas a frota tem
mais de 60 milhões de automóveis, segundo o IBGE — para não falar nos caminhões
e nos 25 milhões de motos, utilizadas sobretudo para o trabalho. Quer dizer que
a queda nos preços não interessa a essa gente toda? Ou que todo cidadão que tem
um carro é rico?
Em
toda essa pregação pela democracia não aparece, jamais, a palavra “liberdade”
É essa maneira de ver o Brasil
que conduz a funerais como o do Largo São Francisco. Cada vez mais o consórcio
da mídia, dos intelectuais e da elite que se crê “de esquerda” apresenta
sintomas de rompimento severo com a realidade objetiva; o resultado é que estão
estabelecendo uma distância intransponível entre o Brasil que querem e o Brasil
que existe. Na cabeça dessa gente, o “11 de agosto” é uma data de imenso apelo
simbólico; na cabeça da maioria da população o 11 de agosto não significa nada.
Disseram que estavam fazendo uma manifestação em favor da “democracia”; era um
evento em favor da candidatura Lula, e atraiu o mesmo público que atraem os
comícios da campanha eleitoral do ex-presidente. É a mesma coisa com a “carta”.
Foi escrito lá que era um grito em favor do “estado democrático de direito”.
Era um grito em favor da esquerda, numa faculdade onde os professores são de
esquerda, o centro acadêmico é de esquerda, os bedéis são de esquerda; até a
cera do assoalho é de esquerda. Acham que é possível juntar multidões, e ganhar
voto, defendendo o STF.
Não percebem que o STF é uma
das instituições mais desmoralizadas deste país; numa pesquisa publicada há
pouco em O Estado de S. Paulo, só 16% dos brasileiros disseram que
têm respeito pelo Supremo. Em toda essa pregação pela democracia não aparece,
jamais, a palavra “liberdade”. Não se mencionam em nenhum momento o direito de
livre expressão, o direito à liberdade política ou, na verdade, quaisquer
direitos individuais.
Não há menção, é óbvio, às
prisões de jornalistas, de chefes partidários ou de deputados em pleno
exercício de seu mandato — todos eles admiradores do presidente.
Não há nenhuma objeção ao fato
de que o ministro Moraes desrespeita a lei todos os dias, ao manter aberto o
seu inquérito ilegal para investigar “atos antidemocráticos”.
Também não se explica de
forma compreensível, e com fatos, por que a democracia estaria sendo ameaçada
no Brasil neste momento — e precisando de abaixo-assinados em sua defesa. Como
assim? Alguém se sente ameaçado pela polícia secreta do presidente? Alguém foi
proibido pelo governo de fazer alguma coisa? Algum apoiador da campanha Lula
foi punido, ou teve os seus rendimentos bloqueados, por falar mal de Bolsonaro
nas redes sociais, ou por desejar que ele morra queimado? Como a democracia
pode estar ameaçada num país onde o STF, a cada cinco minutos, expede decretos
exigindo que o presidente da República “explique” tudo o que passa pela cabeça
dos partidos de esquerda — do desfile do 7 de Setembro à varíola do macaco?
Um juiz, a pedido da mesma esquerda, proíbe um outdoor contra o comunismo no Rio Grande do Sul — e é o governo que ameaça a democracia?
Mais obscura ainda é a
proposição de que para salvar a democracia o brasileiro tem de votar em Lula —
pois é exatamente disso que estão falando, quando se deixam de lado a
hipocrisia e toda a imensa tapeação que foi montada em torno do assunto. Por
que votar em Lula é ser a favor da democracia e votar em Bolsonaro é ser
contra? O voto livre é um dos direitos mais elementares do regime democrático;
porque a “carta”, e todo o universo construído em torno dela, nega às pessoas o
direito de votar no atual presidente do Brasil? Ele não está no cargo porque
deu um golpe e sim porque foi eleito pelo voto de quase 58 milhões de cidadãos,
nessas mesmas urnas que o STF trata como o Santíssimo Sacramento. No fim, ficam
indignados quando uma postagem de Bolsonaro nas redes sociais, fazendo pouco da
“carta”, tem 360.000 sinais de aprovação, e a postagem de Lula, fazendo elogio,
tem 6.000. Será que é mesmo uma surpresa tão grande? É perfeitamente possível
que “o 11 de agosto” e o seu fiasco não queiram dizer nada para o resultado da
eleição presidencial de outubro; a maioria dos eleitores nem tomou conhecimento
de que aconteceu alguma coisa de especial nesse dia. Mas se é com a “carta”, e
com o seu apoio em praça pública, que contam para voltar ao Palácio do Planalto,
é melhor que comecem a refazer as contas.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Revista Oeste, nº 126, 19-8-2022
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