sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A democracia caolha do ‘11 de agosto’

Disseram que estavam fazendo uma manifestação em favor da “democracia”; era um evento em favor da candidatura Lula, e atraiu o mesmo público que atraem os comícios do ex-presidente

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Freepik

J. R. Guzzo

Deveria ser, pelo que garantiam os formadores de opinião, os grão-duques da “análise política” e os peritos em nos dizer o que o povo está pensando a cada minuto, um momento decisivo na história das “lutas populares” neste país — a hora em que as massas, a uma só voz, se levantariam em defesa do ministro Alexandre de Moraes, das urnas eletrônicas e da volta de Lula à Presidência da República. Acabou sendo, no mundo dos fatos concretos, apenas mais um daqueles arranques penosos de cachorro atropelado, como diria Nelson Rodrigues — uma coisa sem graça, sem vigor e sem esperança. Chegaram a dizer, num surto de empolgação, que desta vez “o Bolsonaro” tinha ido longe demais com seus “ataques” ao sistema de apuração das eleições; desafiou a “sociedade civil”, e com a “sociedade civil” não se brinca. A resposta do povo seria a manifestação monumental em frente à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, no dia 11 de agosto, para a leitura da “Carta aos Brasileiros em Defesa da Democracia”. No fim, foi um fracasso miserável.

A manifestação de massa não tinha massa; não chegou a ocupar nem o modesto Largo de São Francisco, onde já não cabe muita gente, e ainda menos qualquer das ruas vizinhas. Não havia um único trabalhador de verdade para representar a classe operária. Nos muros da faculdade eram exibidos cartazes de protesto contra a “fome” e o “racismo”. Os peixes gordos foram admitidos dentro do prédio — as caras mais conhecidas, os advogados penais que cobram caro para defender ladrão, os empresários socialistas e mais do mesmo. O resto ficou de fora, no frio e na chuvinha. “Voltei pessimista do Largo de São Francisco”, lamentou uma personalidade das classes culturais anti-Bolsonaro presentes no evento. “Pouquíssima gente, pouquíssimos jovens, os mesmos intelectuais de ideias mofadas de sempre, zero vibração.” Foi um resumo realista — em contraste com a visão geral da mídia, que continuou fiel à crença de que a carta “em defesa da democracia” tinha sido uma segunda chegada do homem à lua.

O Brasil, para dar um exemplo, tem 156 milhões de eleitores; a “carta” representa uns 0,2% disso

A carta, segundo disse no ar uma jornalista da televisão, teve 300 e tantas mil assinaturas, o que lhe pareceu algo francamente excepcional, pelo seu tom de voz, a ênfase em anunciar cada algarismo da cifra e o semblante de espanto diante do que lhe pareceu a imensidão do número anunciado. (Pelo menos uma das assinaturas, a do empresário Paulo Skaf, foi falsificada. Será que foi só uma?) E daí, se foram mesmo essas 300.000? Não é nada de mais — é apenas, de novo, a velha dificuldade da imprensa para lidar com elementos rudimentares do senso de proporção. O Brasil, para dar um exemplo, tem 156 milhões de eleitores; a “carta” representa uns 0,2% disso. O abaixo-assinado pedindo para o Senado julgar o impeachment do ministro Moraes já tem 3 milhões de assinaturas, ou dez vezes mais — e por aí vamos, na permanente operação de retirada que o jornalismo nacional executa sempre que encontra números pela frente. É o mesmo estado de espírito que leva às manifestações de negacionismo diante da queda no preço dos combustíveis.

Outra jornalista, também da televisão, nos garante que a gasolina mais barata só interessa aos ricos — porque, pelo que deu para entender, só os ricos possuem carros que gastam muita gasolina. É como se a frota brasileira fosse formada apenas por SUVs Cayenne de R$ 1 milhão a unidade — e como se os milionários que possuem esses aviões estivessem angustiados com o que gastam para encher o tanque. Mas a frota tem mais de 60 milhões de automóveis, segundo o IBGE — para não falar nos caminhões e nos 25 milhões de motos, utilizadas sobretudo para o trabalho. Quer dizer que a queda nos preços não interessa a essa gente toda? Ou que todo cidadão que tem um carro é rico?

Em toda essa pregação pela democracia não aparece, jamais, a palavra “liberdade”

É essa maneira de ver o Brasil que conduz a funerais como o do Largo São Francisco. Cada vez mais o consórcio da mídia, dos intelectuais e da elite que se crê “de esquerda” apresenta sintomas de rompimento severo com a realidade objetiva; o resultado é que estão estabelecendo uma distância intransponível entre o Brasil que querem e o Brasil que existe. Na cabeça dessa gente, o “11 de agosto” é uma data de imenso apelo simbólico; na cabeça da maioria da população o 11 de agosto não significa nada. Disseram que estavam fazendo uma manifestação em favor da “democracia”; era um evento em favor da candidatura Lula, e atraiu o mesmo público que atraem os comícios da campanha eleitoral do ex-presidente. É a mesma coisa com a “carta”. Foi escrito lá que era um grito em favor do “estado democrático de direito”. Era um grito em favor da esquerda, numa faculdade onde os professores são de esquerda, o centro acadêmico é de esquerda, os bedéis são de esquerda; até a cera do assoalho é de esquerda. Acham que é possível juntar multidões, e ganhar voto, defendendo o STF.

Não percebem que o STF é uma das instituições mais desmoralizadas deste país; numa pesquisa publicada há pouco em O Estado de S. Paulo, só 16% dos brasileiros disseram que têm respeito pelo Supremo. Em toda essa pregação pela democracia não aparece, jamais, a palavra “liberdade”. Não se mencionam em nenhum momento o direito de livre expressão, o direito à liberdade política ou, na verdade, quaisquer direitos individuais.

Não há menção, é óbvio, às prisões de jornalistas, de chefes partidários ou de deputados em pleno exercício de seu mandato — todos eles admiradores do presidente.

Não há nenhuma objeção ao fato de que o ministro Moraes desrespeita a lei todos os dias, ao manter aberto o seu inquérito ilegal para investigar “atos antidemocráticos”.

Também não se explica de forma compreensível, e com fatos, por que a democracia estaria sendo ameaçada no Brasil neste momento — e precisando de abaixo-assinados em sua defesa. Como assim? Alguém se sente ameaçado pela polícia secreta do presidente? Alguém foi proibido pelo governo de fazer alguma coisa? Algum apoiador da campanha Lula foi punido, ou teve os seus rendimentos bloqueados, por falar mal de Bolsonaro nas redes sociais, ou por desejar que ele morra queimado? Como a democracia pode estar ameaçada num país onde o STF, a cada cinco minutos, expede decretos exigindo que o presidente da República “explique” tudo o que passa pela cabeça dos partidos de esquerda — do desfile do 7 de Setembro à varíola do macaco?

Um juiz, a pedido da mesma esquerda, proíbe um outdoor contra o comunismo no Rio Grande do Sul — e é o governo que ameaça a democracia? 

Mais obscura ainda é a proposição de que para salvar a democracia o brasileiro tem de votar em Lula — pois é exatamente disso que estão falando, quando se deixam de lado a hipocrisia e toda a imensa tapeação que foi montada em torno do assunto. Por que votar em Lula é ser a favor da democracia e votar em Bolsonaro é ser contra? O voto livre é um dos direitos mais elementares do regime democrático; porque a “carta”, e todo o universo construído em torno dela, nega às pessoas o direito de votar no atual presidente do Brasil? Ele não está no cargo porque deu um golpe e sim porque foi eleito pelo voto de quase 58 milhões de cidadãos, nessas mesmas urnas que o STF trata como o Santíssimo Sacramento. No fim, ficam indignados quando uma postagem de Bolsonaro nas redes sociais, fazendo pouco da “carta”, tem 360.000 sinais de aprovação, e a postagem de Lula, fazendo elogio, tem 6.000. Será que é mesmo uma surpresa tão grande? É perfeitamente possível que “o 11 de agosto” e o seu fiasco não queiram dizer nada para o resultado da eleição presidencial de outubro; a maioria dos eleitores nem tomou conhecimento de que aconteceu alguma coisa de especial nesse dia. Mas se é com a “carta”, e com o seu apoio em praça pública, que contam para voltar ao Palácio do Planalto, é melhor que comecem a refazer as contas.

Título e Texto: J. R. Guzzo, Revista Oeste, nº 126, 19-8-2022

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