terça-feira, 30 de agosto de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Quase um gesto brusco


Aparecido Raimundo de Souza

TODAS AS SEXTAS-FEIRAS, depois do jantar, o Rocambole Simionato se acomoda, mais a esposa Mimice, num sofá de canto da sala enorme (um retrátil recentemente adquirido que fica, evidentemente, numa rebarba da peça). Rocambole liga a televisão tela de cinema na Netflix. Ali, agarradinhos, ambos passam a assistir a uma série nova que acaba de entrar no ar. É praxe, depois da derradeira refeição, a diversão no espaço de rádio e tevê atonar (1), o que dura, às vezes, até duas ou três da manhã. Como das outras vezes, mandam a Zefa (Zefa é a empregada) para seus aposentos descansar por algumas horas, só voltando à cozinha, tempos depois, para o preparo de uma baciada de pipocas regada a copos de refrigerantes estupidamente gelados.

Toda sexta-feira, portanto, impreterivelmente a mesma cena comum se repete. Mimice, nos braços do amado, aos beijos e dezenas de outras blandiciosidades, se solta e se entrega. Como em desfrute de uma lua de mel eterna e carecente, a cada início de final de semana necessitando ser refeita, em face do trabalho de cada um, marido e mulher aprimoram e revigoram os carinhos e afagos culminando em algo mais estrepitoso que meros gritinhos e palavras ininteligíveis ditas no calor profundo do sexo comendo a todo vapor. Por conta de espetaculosos momentos apimentados, ela fecha os olhos, abre os lábios, murmura palavras melosas e, novamente, se prende e se perde, às atenções voltadas ao homem que escolheu para ser a sua outra metade da maçã. Nesta noite, de súbito, entretanto, assim do nada, um fato estranho e alheio ao clima, cotidiano se faz gigantesco.

Rocambole Simionato muda os hábitos costumeiros sem prévio aviso e, ato contínuo, pula, como um tarado, na garganta da esposa e começa a lhe apertar o cachaço (2), ao tempo em que manda, cheio de ira, um aviso à infeliz, coitadinha, totalmente desprevenida e pega de surpresa:
— Meu amor, preste atenção no que vou lhe falar. Se um dia você resolver me trair, se achar um médico mais novo e interessante que eu, lá no hospital onde você trabalha como brilhante infectologista, pelo amor de Deus, me avise. Me comunica formalmente, entendeu? Não vou suportar viver com um par de chifres enfeitando a minha testa. Estamos de acordo? Responda, doutora, estamos de acordo? Temos um trato?

Mimice, num primeiro ímpeto, consegue dar uns gemidos de espanto e terror e custa a se livrar, por mais que tente, das mãos fortes do companheiro enciumado. Ele quase a leva às raias do desespero, em face do modo como segue lhe pressionando a frágil goela. Depois de se refazer do susto repentino, e do medo de passar o resto de seus dias comendo capim pela raiz, aos prantos, a metade abundante do Rocambole Simionato consegue encarar o seu pé de chinelo faltoso. Amedrontada e sem entender bulhufas, a infeliz, balbucia, afônica, agitada, quase em choque:
— Que foi que houve, amor? Está desconfiado de mim? Temos somente seis meses de casados e já está me tratando como se eu fosse uma rameira vagabunda? Que motivos lhe dei? Me responda, por que trairia você?

O psiquiatra chefe do hospital de loucos, doutor Rocambole Simionato, de repente, volta a sacrificar, ainda com mais pressão o cangote da sua linda e adorada:
— Só lhe dei um aviso, minha boneca. Como meus amigos malucos vivem ventilando lá no manicômio assuntos relacionados a traições e outras baboseiras, achei de bom alvitre lhe colocar a par e rezar para que você entenda e pegue a visão. Se ligou na visão? Se um dia, por qualquer circunstância resolver me enfeitar a testa com qualquer mediquinho ou “medicozinho” (3) da sua equipe, com antecedência, me avisa, me avisa... ou como última alternativa, me pergunte...
— Per... gun... tar o que... meu... amor?
— Se eu estou disposto, como psiquiatra a doar o meu par de chifres esquizofrênicos para você transformar as peças num vistoso berrante.

Mimice pensa em soltar uma estrondosa gargalhada, mas se contém. Seu amado pode se enfurecer além da encolerização dominante que de forma grandiosa percebe em seu peito arfante. Antes de ser libertada totalmente das mãos fortes do descontrolado, Mimice indaga dele os motivos daquela agressão fortuita e da vigília inopinada seguida de gestos abruptamente maldosos e insensatos, quando bem poderia ter enveredado por um papo reto sem demandar fazer uso de modos extravagantes e cheios de agastamentos desnecessários. Até onde ele sabia, a bela jovem sequer dera motivos para tamanha desconfiança. Se tivesse certeza de alguma coisa anormal ou não condizente com a hombridade e sinceridade dela, não teria caído na esparrela e se unido em matrimônio.

Entretanto, a infeliz impensadamente deita tudo a perder, quando responde ao seu interlocutor, quase num fio de voz:
— Meu bem, por que está agindo assim?
O sujeito, com ar de quem está disposto a levar avante o que dissera e, à sério, concernente a repetir os carinhos desamorosos e inopinados no gasnete (4) da inimitável criatura, suspira e vocifera ainda meio fora de si:
— Só lhe dei um aviso, minha querida. Fica, portanto, ligada.
Mimice, às vistas arregaladas, o medo ainda tomando conta do rosto, segurando a gorja (nesta altura, mais vermelha que olhos de pinguço), solta, a voz, ou o que restou dela, e o faz clara, literalmente embargada (5):
— Amor... meu bem, por que... não me... por que... não me disse... isso mais... mais cedo?!

Uma hora ou duas depois, a Zefa vem com as pipocas quentinhas. Ao ingressar na peça se depara com a televisão falando alta e sozinha e seus patrões estirados no chão, nus, um por cima do outro, envoltos numa enorme poça de sangue.
Rocambole Simionato e Mimice estavam mortos. Ao lado deles, a arma do crime jazia, fria e indiferente, à cena brutal.

Notas de rodapé:

1 Atonar – vir à tona, trazer à baila.

2 Cachaço – cangote, nuca.

3 Mediquinho ou medicozinho –ambas as palavras sinalizam o diminutivo do profissional da medicina.

4 Gasnete – garganta, goela.

5 Gorja – pescoço.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. 30-8-2022

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