Numa série de sabatinas com
presidenciáveis, o Jornal Nacional exibiu um “chá das cinco” entre compadres
com o ex-presidiário Lula e os apresentadores William Bonner e Renata
Vasconcellos
Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock |
Ana Paula Henkel
Há algum tempo tem sido
difícil explicar o Brasil para família e amigos na América. Bem, na verdade,
tem sido difícil explicar o Brasil até para brasileiros. Os acontecimentos
desta última semana, então, transformaram a tarefa em algo impossível. Um
ministro da mais alta corte do país, membro do tribunal que deveria
salvaguardar a Constituição e aplicar as leis de forma responsável e justa
decidiu — mais uma vez — rasgar mais páginas da nossa Carta Magna e ignorar por
completo o ordenamento jurídico da República.
Em mais um impulso narcisista e totalmente inconstitucional, Alexandre de Moraes determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão contra um grupo de empresários que apoia o presidente Jair Bolsonaro e que teria defendido um golpe de Estado em caso de vitória de Lula nas eleições. A conversa, que poderia ter acontecido numa mesa de bar, aconteceu em mensagens trocadas privadamente em um grupo de WhatsApp. Bem, o capítulo “Alexandre de Moraes” já não é nem mais um mero “capítulo” no imenso livro “Tente Explicar o Brasil” que seria impossível de ser publicado por qualquer membro da Academia Brasileira de Letras. O arrogante e destemperado ministro se tornou uma série inteira à parte.
A semana do “Tente Explicar o Brasil” também trouxe a sequência do caminho — agora livre — de um político corrupto, condenado em três tribunais com “sobra de provas” e preso. O queridinho do STF agora está, oficialmente, em campanha presidencial. Numa série de sabatinas com presidenciáveis, o Jornal Nacional, da Rede Globo, exibiu na quinta-feira um “chá das cinco” entre compadres com o ex-presidiário Luiz Inácio da Silva e os apresentadores William Bonner e Renata Vasconcellos. O Brasil, estupefato diante de tantas bobagens e mentiras ditas por um ladrão de dinheiro público, teve de ouvir que o “agronegócio é fascista e direitista” e que um movimento que propaga terrorismo doméstico, o MST, defendido pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, “está fazendo uma coisa extraordinária: está cuidando de produzir”. Dê uma chegadinha ali às ferramentas de busca e digite “MST/invasão/animais” e veja com os seus próprios olhos a barbárie que esses terroristas promovem em fazendas e laboratórios pelo Brasil. (Aviso: CENAS FORTES!)
A cereja do bolo do “happy
hour” de Lulinha, Billy Bonner e Rê talvez tenha passado despercebida, já
que a pérola foi dita logo no começo da rodada. A conversa de bar foi aberta por
Bonner, que, ao tentar questionar, cheio de dedos, sobre os escândalos de
corrupção dos governos petistas e mencionar o histórico do ex-enjaulado com a
Justiça brasileira, finalizou o comentário dizendo: “O senhor não deve nada à
Justiça”.
“O senhor não deve nada à
Justiça.”
Repitam comigo, amigos: O –
senhor – não – deve – nada – à – Justiça.
É de embrulhar o estômago.
Distopia orwelliana
Mas, calma, temos de voltar a
fita. Nesta semana, iniciando a série de sabatinas do Jornal Nacional,
também tivemos, de maneira bem diferente, o encontro dos apresentadores
do Jornal Nacional com Jair Bolsonaro. Apesar do nosso papel e
dever como jornalistas de assistir ao que muitos brasileiros preferem não ver —
ainda mais se tratando de Rede Globo —, a análise do que podemos chamar de
inquisição do atual presidente e do bate-papo com o ex-presidiário deve ser
feita como um dever cívico por cada um de nós. Faço um convite a todos, que
percam alguns minutos do dia (recomendo um antiácido antes) e testemunhem
diante de seus próprios olhos o que poderia ter saído, tranquilamente, das
páginas de uma distopia orwelliana.
Entre caras, bocas, risinhos
sarcásticos e verdadeiros editoriais dos apresentadores daquele que já foi
considerado o programa de notícias mais relevante do país, Renata Vasconcellos
usou as seguintes palavras para questionar o atual presidente sobre algo na
pandemia: “(…) Medidas socioeconômicas importantíssimas, elas foram adotadas
(…) para sustentar o ‘fica em casa’ no pico da pandemia — ‘fica em casa, se puder’”.
Com dedinho levantado e ênfase no “se puder.”
“Fica em casa, se puder.”
Fica – em – casa – se – puder.
Amigos, amigos…
No
mundo da Oceania de 1984, não há mais um senso de devido processo
legal, investigação, respeito ao sistema acusatório e muito menos uma presunção
de inocência até que se prove a culpa
Ou eu dormi durante dois anos
e só acordei agora, ou nunca ouvi esse “se puder”. Para todos os efeitos de
justiça com a Renata e seu (err) jornalismo, fiz uma boa busca na internet e
não encontrei nenhum registro da expressão “fica em casa, se puder”. Encontrei
dezenas e dezenas de artistas, celebridades, jornalistas — inclusive a D.
Renata Vasconcellos! — bradando o famigerado “Fique em casa!”, “Fique em
casa!”, “Fique em casa”… quase que em um transe coletivo.
Um vídeo que viralizou durante
o FIQUE EM CASA, sem o SE PUDER, Dona Renata, foi mostrado no programa Profissão
Repórter, da emissora em que a senhora trabalha. Enquanto jornalistas
podiam trabalhar acompanhando a fiscalização de prefeituras que mandavam seus
agentes da Gestapo fecharem comércios e multarem quem estivesse aberto,
comerciantes entravam em desespero enquanto jornazistas de
várias emissoras apontavam o dedo para aqueles que ousassem, por pura
necessidade, trabalhar para sustentar a família. Quando as viaturas chegavam,
os repórteres que alimentavam os noticiários apresentados por jornalistas que
liam os TelePrompTers com caras, bocas e expressões no melhor
estilo “que horror, você saiu de casa para trabalhar!” ainda tinham a
desfaçatez de culpar comerciantes, lojistas, barraqueiros, vigias… Pais de
família que simplesmente “não podiam” ficar em casa imploravam para não serem
multados ou presos. Nos mesmos noticiários, famílias sem ter o que comer e
crianças há meses sem ir à escola eram mostradas.
"Fique em casa se puder"
— Otavio (@otavi0XI) August 23, 2022
pic.twitter.com/ay2RekKylu
Para não dar o braço a torcer
para o que o presidente Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump, nos EUA,
alertavam de que não seria prudente trancar tudo e a economia “a gente vê
depois”, Renata Vasconcellos decidiu acrescentar um “se puder” em uma frase que
— nem de longe — implicava algum tipo de escolha ou opção para cidadãos do
Brasil e do mundo. Quem não se lembra de outra colega de Renata e Bonner, a
apresentadora Maju Coutinho, que, depois de dizer uma das maiores mentiras da
pandemia, a de que os especialistas eram unânimes em forçar
o lockdown, proferiu naturalmente, mostrando uma insensibilidade
inacreditável diante de tanto sofrimento, o famoso o clichê “o choro é livre”.
Enquanto os mais necessitados, os mais pobres e vulneráveis iam sendo afetados
de maneira cruel a cada dia de trancamento forçado, com direito a truculência
policial encampada por governadores tiranos, Dona Maju, Dona Renata e toda uma
turba de jacobinos globais continuavam trabalhando de estúdios com ar
refrigerado ou em home offices enquanto postavam em suas redes
sociais “Fique em casa”. Muitos ainda acrescentaram ao mantra “a economia a
gente vê depois”.
As imagens de pânico, lágrimas
e desespero por não poder trabalhar e trazer comida para casa estão espalhadas
por toda a internet. Postei em meu Instagram, logo após o “se puder” global, um
vídeo curto, de quatro minutos apenas, com algumas cenas para refrescar a
memória da Dona Renata Vasconcellos. Gôndolas de supermercados foram
bloqueadas, o Estado policialesco decidiu por todos muitos o que eram “itens
necessários” que podiam ser comprados. A prefeitura de São Paulo soldou portas
de lojas para impedir sua abertura. Trabalhadores ambulantes com carrocinhas de
pipoca ou barraquinhas de frutas tiveram seus carrinhos virados por policiais,
espalhando tudo no chão. Enquanto ônibus, metrôs e trens permaneciam lotados
nas grandes cidades, uma mulher foi espancada e outra algemada nas praias
desertas do Rio de Janeiro. Em Araraquara, interior de São Paulo, outra mulher
que corria em um parque também deserto da cidade foi abordada pela polícia,
recebeu voz de prisão, foi imobilizada por quatro homens e algemada. Um deles
repetia com calma enquanto ela gritava que não conseguia respirar porque alguém
estava lhe aplicando um “mata-leão”: “Não resista. Fique calma e não resista”.
SE PUDER, claro.
Nesta semana, nos Estados
Unidos, Anthony Fauci, o nome da pandemia na América, o deus da velha imprensa
ianque, anunciou sua aposentadoria da vida pública após sua liderança na
pandemia permanecer sob forte escrutínio e cheia de controvérsias. Quando o
vírus chinês atingiu os Estados Unidos, Dr. Fauci rapidamente se tornou um nome
familiar e seu rosto estava em todos os canais de TV 24 horas por dia, sete
dias na semana. Suas recomendações foram tratadas como evangelho por muitos.
Mas, à medida que os efeitos de longo prazo de políticas como máscaras,
vacinação experimental compulsória e os efeitos do lockdown vinham
à tona, os críticos e a população em geral se encheram de perguntas, e o santo
Fauci não gostou de ser questionado. Coisa de ministro de corte suprema
tupiniquim.
Na terça-feira dia 23, Fauci
foi entrevistado por Neil Cavuto na Fox News, e o âncora da emissora fez
perguntas incômodas àquele que é acusado pelos republicanos de ter colaborado
com a disseminação do vírus chinês por financiar pesquisas de ganhos de função
no laboratório de Wuhan. Na China. Cavuto perguntou: “Olhando para trás em
algumas dessas decisões, incluindo a gravidade da própria epidemia, mas
fechando praticamente toda a economia norte-americana, você se arrepende
particularmente desse passo?”. Fauci, assim como Renata Vasconcellos e William
Bonner, diz, como quem está numa realidade paralela — ou alguém que
simplesmente quer reescrever a história — que “é preciso deixar bem claro para
os telespectadores, para que eles entendam que eu (Fauci) não fechei nada e que
não acredito que os lockdowns causaram danos irreparáveis a
qualquer pessoa. Se voltarmos, basta ver que queríamos apenas achatar a curva
naqueles 15 dias.”
Cavuto, um experiente e
intelectualmente honesto jornalista, interrompe aquele que causou graves danos
a futuras gerações e dispara: “Mas o senhor não acha que tudo foi longe demais?
Quaisquer que tenham sido suas intenções iniciais, o senhor não acredita que
tudo passou dos limites, especialmente para as crianças, que não puderam ir
para as escolas, e que isso poderá trazer um dano permanente?”. O que o
personagem favorito de veículos como o The New York Time e Washington
Post disse? “Não acho que haverá dano permanente. Não acredito que
prejudicamos alguém, e acho que, se você voltar e puxar coisas sobre mim, eu
também fui uma das pessoas que disseram que tínhamos de fazer tudo o que
podíamos para trazer as crianças de volta à escola. Sempre disse que era muito
importante protegermos as crianças dos efeitos colaterais de mantê-las fora da
escola.”
Lendo tudo isso, seu sangue
ferve como o meu? O que essa gente, William, Renata, Fauci, pensa que somos?
Idiotas? Burros? Que temos amnésia?
Há mais de um ano, em agosto
de 2021, escrevi aqui em Oeste um artigo com o título “Ciência, ciência, silêncio”.
Naquele momento, a pandemia havia sido controlada nos Estados Unidos, país que
já havia vacinado mais de 165 milhões de pessoas. Alguns Estados com
administrações republicanas, como a Flórida, por exemplo, nem sequer fecharam
completamente suas escolas — mesmo em 2020 —, e os números de contágio e mortes
não foram superiores aos de Estados que trancaram tudo por mais de um ano, como
a Califórnia. Ali, já deveríamos estar voltando à vida normal, o próprio Fauci
prometeu que seria um pouco de lockdown, achatar a curva, máscaras
por um tempo e estaríamos de volta. Havia, desde outubro de 2020, um manifesto
elaborado por especialistas de Harvard, Oxford e Stanford — a Declaração de
Barrington — que já revelava que lockdowns totais seriam
nefastos não apenas para a economia, mas para as pessoas, sua saúde física e
mental; e que o correto seria segregar os mais velhos, doentes e com
comorbidades. Mesmo com mais da metade da população vacinada, no Brasil e nos
EUA, eles continuaram exigindo mais máscaras, mais trancamentos, mais ensino
remoto, mais estabelecimentos, escolas, parques, bares… fechados.
“Fique em casa, seu
fascista!”
Um estudo recente do Brookings
Institute mostrou que as diferenças nas pontuações dos testes entre os alunos
das escolas primárias de baixa e alta pobreza cresceram 20% em matemática e 15%
em leitura durante as paralisações da pandemia. Muitas crianças no Brasil foram
trancadas em casa com seus abusadores, sem alimentação nem ensino básico. Desde
os lockdowns, o CDC documentou um aumento de 51% nas tentativas de
suicídio entre adolescentes. De acordo com a UCLA, a taxa de mortes por overdose de
adolescentes quase dobrou. Há outras dezenas de pesquisas do mesmo gênero
espalhadas pelo mundo. Toda a tirania do “Fique em casa, seu fascista!” está
amplamente documentada para que figuras como o trio Bonner, Vasconcellos e
Fauci jamais tenha a possibilidade de tentar editar o que fizeram, o que
falaram, o que apoiaram e o monstro que alimentaram que devorou os mais
vulneráveis. As cidades pareciam cidades fantasmas. Jamais esquecerei a
entrevista que o prefeito de Aparecida concedeu ao programa Os Pingos
nos Is. Com lágrimas nos olhos, Luiz Carlos Siqueira pedia doações de
alimentos, agradecia a ajuda do governo federal e relatava que não conseguia
retorno da gestão do governador de São Paulo e que a população estava faminta,
sem dinheiro, sem trabalho e sem esperanças com o lockdown imposto
pelo governador João Doria.
Distorções e mentiras são
estratégias protagonistas no famoso 1984, romance de George Orwell.
As palavras de Orwell, publicadas em 1949, aumentaram em popularidade nos
últimos anos não apenas porque as sociedades modernas estão se tornando cada
vez mais parecidas com o que foi descrito na obra fictícia do autor, seja na
vigilância em massa seja na guerra cultural perpétua. O romance de Orwell é
presciente de várias maneiras, e o livro costura os sintomas da atual sociedade
com um tipo de totalitarismo — pregado de forma sistemática por Alexandre de
Moraes. Chega a ser assustador ler sobre o Ministério da Verdade da distopia de
Orwell, escrita há mais de 70 anos, como se ela profetizasse os atuais tempos. No
mundo da Oceania de 1984, não há mais um senso de devido processo
legal, investigação, respeito ao sistema acusatório e muito menos uma presunção
de inocência até que se prove a culpa. Em vez disso, a ideologia arregimentada
— a supremacia do poder do Estado para controlar todos os aspectos da vida de
alguém para impor uma ideia fossilizada de qualidade obrigatória — distorce
tudo, desde o uso da linguagem até a vida privada.
É também do mundo irreal
criado por Orwell que personagens da vida real tiram as distorções e as
falácias de quem errou feio e agora tenta editar a história. No livro, mais
atual do que nunca, a passagem seguinte chega a ser assustadoramente similar
com a atualidade: “Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todos
os livros reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas e
prédios de rua foram renomeados, todas as datas foram alteradas. E o processo
continua dia a dia e minuto a minuto. A história parou. Nada existe a não ser
um presente sem fim no qual o Partido tem sempre razão. Quem controla o passado
controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”.
A diferença entre a Oceania, o
Brasil ou os Estados Unidos é que agora temos uma coisinha incômoda que Orwell
não imaginou. A internet. Para aqueles que tentam — e tentarão, sempre —, seja
em debates seja no noticiário, reescrever a história, será um pouco mais
complicado realizar essas edições.
Para William Bonner: Lula não
está limpo e não está em dia com a justiça. Ele não passa de um descondenado por
manobras ativistas, mas jamais foi inocentado. Para Renata Vasconcellos: nunca
houve “SE PUDER”, Renata. Nunca. E vocês não reescreverão a história.
Título e Texto: Ana Paula Henkel, Revista Oeste, nº 127, 26-8-2022
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