domingo, 31 de julho de 2022

[As danações de Carina] Às vezes, quando não existo no meu mundo...

Carina Bratt 

TODAS AS TARDES, por volta das cinco horas, quando saio para correr, impreterivelmente cruzo com o parquinho infantil que existe dentro de meu condomínio. O espaço é enorme e aconchegante. Oferece graciosamente um encanto prazeroso ao complexo das torres altas e imponentes. Na verdade, empresta aos arredores dos edifícios, contornos formosos, em face de um misturado de árvores as mais abundantes e diversas. Além da sombra gostosa, o lugar se faz multifacetado pelo colorido ímpar das plantações meticulosamente cuidadas. Lembra, ainda que ligeiramente, uma pintura Nanga, de berço chinês, retratando as paisagens de um emaranhado de coloridos silvestres, com pássaros de várias espécies traçados à base de tinta carvão. 

Depois que a gurizada se recolhe a seus lares, com suas mamães e babás, o silêncio reina impecável. Por volta das vinte e duas, escudados nessa quietude harmoniosa, casais de namorados de ambos os edifícios, abundam. Assumindo a existência flutuante da perpetuação da espécie, descem os pombinhos de seus apartamentos e vêm ocupar as dezenas de bancos espalhados para a troca das carícias extravagantes, seguidas dos abraços apaixonados e beijos sensuais. Numa dessas tardes, ainda entregue ao sabor do alvoroço infantil, ao regressar para o meu quadrado, me chama a atenção uma menina de uns doze ou treze anos, sentada com as pernas cruzadas, o vestidinho lilás cobrindo recatadamente as suas intimidades dos joelhos para cima. Entremeada entre os balanços, as gangorras, e o Gira-gira, se faz sozinha. 

Está distanciada das outras mocinhas de sua idade. Ela observa atentamente as folhas que caem sacudidas e jazem ao chão. Percebo que se encanta grandemente com o barulho áspero que elas produzem quando arrastadas pelo vento. Tal particularidade lhe faz sorrir de um modo jamais visto, o que afasta de minha mente, na hora, a ideia de uma pessoinha senil, incapacitada para emoções vigorosas. Completando a sua felicidade, balança a cabeça para baixo e para cima, curvando as costas em movimentos cadenciados, ao tempo em que se abre, por inteira, num sorriso infantil de imensurável magnitude. Essa atitude pouco incomum, deslumbra meu coração e confesso, me alicio toda por dentro.

Foto: Jmphoto/Dreamstime

Foi assim, não nego, desde a primeira vez em que me deparei com seu ‘extasiamento’, como se, num repente, algo além do normal me tivesse enfeitiçado. Desde então, passei a observar a sua figura logicamente, em dias alternados. Num deles, capturei o exato instante em que amassava, com as mãos postas, algumas folhas sem o viço da formosura. O barulho que as folhas produziam, se constituía numa raridade de mágica eletrizante. Fazia seu espírito ensimesmado viajar para um planeta distante, um espaço ilusório e insulso, divorciado da nossa realidade. Um recôndito só seu, sem as ‘interferenciações’ de estranhos. Deixando de lado meus meios e modos de sempre, e vendo a princesa ser chamada pela mãe, várias vezes sem resposta, tendo, por fim, a criatura que se aproximar e a pegar pelo braço, tomei coragem e me fiz presente. 

Com muito tato, indaguei, pressurosa, o motivo do alheamento, observando para começar jogando um papo descontraído, deixando claro que por uma série de dias me detivera perscrutando os modos da garota, o seu agir, referenciando, por derradeiro, a minha curiosidade notadamente quando ela se arroubava com o barulho do vento nas folhas secas levadas sem rumo ao acaso do nada. A mãe me agradeceu, os olhos úmidos e uma vozinha meio embargada, esclareceu:

— ‘Aninha é autista —, confessou a bela senhora. O ruído das folhas a deixa feliz e percebo, aqui dentro de mim, que ela se sente realizada dentro de uma complexidade que custei a entender e a tomar consciência do quanto lhe fazia um bem enorme e lhe acalmava a alma, como se todo seu interior estivesse totalmente em festa’. 

Desde então, descoberto o motivo, passei a dar umas paradas básicas, ao regressar das minhas corridas. Nem sempre a sorte me sorri a ponto de ver mãe e filha no lugar costumeiro. Por assim, quando avisto a menina, me sinto encher de ternura todo o corpo. Digo a mim mesma e a meus botões, que a Aninha nasceu perfeita. Veio cheia de vida, linda, e saudável, agraciada com um probleminha mínimo que não lhe tira (a meu entender), tampouco interfere na sua vida plena das vicissitudes e das benesses de seguir radiante uma ventura saudável e prazerosa dentro de um contexto meio que desconhecido e avesso, mas que não a faz, de forma alguma, diferente das demais gurias da sua idade. 

Aninha vive em seu pequeno mundinho condexo, viajando ao som da cumplicidade sensorial das folhas que o vento produz ao levar, para longe, as verdinhas que num ‘ontem’ não muito fora do ‘hoje-agora’, enfeitaram as árvores que circundam o jardim em torno do parquinho existente dentro do condomínio onde resido. Me sinto viva e renovada. É uma lição de aprendizado urgente, que me faz voltar à realidade e focar no que eu pensava estar completamente perdido. Cá entre nós, amigas: quisera também ter aquela capacidade de percepção apurada, a susceptibilidade delicada de, igualmente, me deleitar. De me fazer encantada; aberto todo meu rosto num sorriso brejeiro; bem ainda me transportar para o longínquo da Terra; sair do meu cotidiano e esquecer os problemas e os dissabores; as correrias e os contratempos de meu estado natural e por que não literalmente sadio? 

Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 31-7-2022

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