domingo, 19 de junho de 2022

[As danações de Carina] Casos de família

Carina Bratt

Para minha amiga Bia de Almeida, saudade eterna’.

SEXTA-FEIRA, DEZESSETE. POR VOLTA DE MEIO DIA. Vou ao restaurante com a Bia, minha amiga, e enquanto almoçamos ela se abre comigo:
— Pois é, Carina. Veja como são as coisas. Quando mamãe era viva, os irmãos se reuniam em nossa casa, aqui em Vila Velha. Comíamos, enchíamos a pança, tomávamos café... contávamos piadas, colocávamos as fofocas em dia...
Faz uma breve pausa antes de prosseguir:
—... Depois que ela partiu, cada irmão parece ter sido sepultado junto com o corpo da nossa velhinha. Cada um se enfurnou em seu canto, e, hoje, é difícil um procurar pelo outro. Ao menos para saber se está vivo, ou se precisa de algo...

— Não telefonam?
— Nem isso fazem, amiga. Todos escafederam, tipo assim, como se a Terra os tivesse tragado.
— E o ricaço da família? Havia um, não é mesmo?
— Sim, o Ricardo. Sequer dá o ar da graça. Se ao menos ligasse, desse notícias, perguntasse se está tudo bem... qual o quê!
Espero com toda paciência que a Bia termine e argumento:
— Família é assim mesmo. Eu, por exemplo, só tenho a minha mãe e o Aparecido. Os demais da nossa linhagem moram no Rio de Janeiro. Iguais aos seus, não telefonam, não escrevem, não mandam e-mails. Perceba, amiga Bia: um simples sinal de fumaça bastaria para salvar toda a solidão pesada que nos rodeia....

Risos espocam de ambos os lados em nossos rostos:
— A família do Aparecido também não difere muito da minha, nem da sua. As filhas deles, não ligam, não fazem visitas, só dão o ar da graça quando se vêm em apuros. A gente acaba se acostumando a uma ausência monótona, meio que forçada, empurrada em nossa goela abaixo como um prato de comida ruim que detestamos. Quando meu pai ainda estava entre nós, eu me sentia mais contemplada. Estávamos sempre juntos, almoçávamos praticamente todos os dias... às vezes saíamos de mãos dadas, pelas ruas... íamos ao shopping...

— E a sua mãe?
— Mamãe, depois da morte dele se fechou em copas. Passa a maior parte do tempo em casa, ora lendo, ora fazendo palavras cruzadas...
— Que gracinha. E quando você viaja?
— Quando viajo, a autora da minha vida se tranca em uma redoma de vidro. Procura na ausência das coisas e no vazio que deixo, achar um motivo para fugir de si mesma. Ela vive me dizendo que está cansada de viver e gostaria muito de virar estrela. Sei que numa dessas viagens que faço ela acabará partindo e, aí, de fato, eu estarei e me verei sozinha à mercê do mundo e dos cuidados de Deus.

— Ninguém fica com ela?
— Mamãe não quer. Tem uma vizinha, a dona Zíbia. Sempre que viajo peço para ela ficar de olho aberto. Dona Zíbia mora no mesmo andar, porta com porta. Aliás, as entradas de ambos os apês, por serem frenteadas, permanecem o dia inteiro abertas. O problema é que a mãe não gosta de incomodar... prefere a companhia de seus livros, o bate papo com seus fantasmas e acredite: ela se sente renovada conversando animadamente longos papos com eles.
— Que doideira, amiga. Fala sério!
— Pra você ver, como são as coisas. Às vezes eu gostaria de dar um tempo, parar com as viagens. Se eu fizer isso, as minhas contas e as de minha mãe se acumularão. Ela não precisa da minha ajuda. Papai deixou uma pensão do exército bem significativa. Apesar disso, eu não me sinto no direito permitindo que ela gaste o dinheiro que recebe. Procuro dar toda a assistência e acho que por ser assim sou abençoada pelo Pai Maior.

— Entendo...
— E você, Bia, me fale um pouco do seu dia a dia.
— Não tenho muito o que falar. Meus pais são separados, mamãe mora com uma tia chata. Tenho dois irmãos e cada um vive no seu próprio universo. Outro dia, quase fui pro beleléu.
— Como assim, amiga?
— Flagrei meu namorado com outra. Isso mexeu muito comigo. Tive vontade de me jogar debaixo de um ônibus...
— Que isso, Bia! Você é jovem, tem saúde, a vida toda pela frente. Ganha bem no emprego... tem seu carro, sua quitinete... até onde sei...

Bia me interrompe. Faz um gesto leve com a mão esquerda. Aquiesço:
— Você não sabe da missa um terço, Carina. O problema que está me matando é o Léo, meu namorado. O filho da mãe tem outra, amiga...
— Bia, você é nova. Conselho, se fosse bom, ninguém dava. Apesar disso, escuta o que vou lhe dizer. Se o Léo não lhe dá o merecido valor, arranje um rapaz direito e decente que goste de você de verdade. Deixe de sofrer... levante a cabeça, reaja, se repagine...
— O problema Carina, é que por duas vezes tentei pôr fim em minha vida.
— Que isso, Bia. Pare com essa loucura. Saia para outra. Esqueça a criatura. Mostre a ela que você se superou...
—Bem que gostaria, Carina. Juro. Sabe o que me impede de deixar o infeliz e ainda não levei à termo colocar fim à existência?
— O quê, Bia?!
— Estou grávida, Carina. Ainda não dá para perceber a barriga. Pense: prenha de gêmeos. Minha alegria, como você pode ver, voou para o ralo. Meu sonho de vida literalmente acabou...

Ontem, sábado, dezoito de junho, logo pela manhã, ao ligar a televisão no noticiário local, me deparo com a fatalidade. Fico sem chão. A cabeça gira. A Bia parou seu carro na hora do movimento intenso, sentido Vila Velha Vitória. Saltou do veículo e se atirou do vão central da Terceira Ponte.

Título e Texto: Carina Bratt. De Vila Velha, no Espírito Santo. 19-6-2022

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