sábado, 25 de junho de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Como pássaro de vidro

Aparecido Raimundo de Souza

BENGALO DO CACHIMBO SALSICHÃO
, o pai de Andorrinha do Cachimbo Salsichão (a moça que caiu da varanda do vigésimo andar do prédio de apartamentos onde morava) foi chamado para prestar esclarecimentos em face do trágico acontecido. Antes dele, esteve na chefatura a esposa, dona Peripécia do Cachimbo Salsichão, Furquilho do Cachimbo Salsichão, irmão da vítima, a senhorita Gaspita de Sá, empregada e Brocardo Amanciado, o namorado de Andorrinha. Tudo levava a crer, teria sido o Brocardo Amanciado o criminoso. Ele vivia brigando com a namorada e, comumente a agredia saindo nos tapas e safanões.

Da última vez em que partiram para as trocas de farpas, Brocardo Amanciado jurou, de pés juntos, que se a “Andorrinha não voltasse para ele, tomaria uma decisão trágica”. A conversa rolou entre Brocardo Amanciado e o irmão Furquilho do Cachimbo Salsichão. Ao delegado, Furquilho do Cachimbo Salsichão relatou, passo a passo, a prosa tida com seu futuro cunhado:
“Eu mato a peste da sua irmã... — disse ele:
— Tem coragem? Perguntei —, incrédulo:
— Até de sobra. Se ela me deixar, faço a cadela ir visitar papai do céu mais cedo, completou, muito sério, e descontrolado:

— Não chame a minha irmã de cadela, alertei agarrando o maldito pela camisa.
— Desculpe. Não foi a minha intenção compará-la a uma cachorra. Coitado desses animais... se entendessem... após isso, virou as costas e saiu”.
Pelo sim, pelo não, Andorrinha do Cacimbo Salsichão teve um final desventurado e calamitoso. Partiu em mil pedaços a juventude de seus dezoito anos, deixando seus familiares à beira de um desespero imensurável, bem ainda de um precipício medonho e sem volta.

O delegado deixou para ouvir o pai da moça por derradeiro, levando em conta vários motivos. Ele odiava o Brocardo Amanciado. Coisa de santo. O seu imaculado, não batia com o do rapaz. Por seu turno, Brocardo tinha um ódio tremendo do sogro, tendo em vista que ele não o deixava pernoitar na casa da amada.

Praticamente dia sim, dia não, ambos entravam em conflito. Se fazia necessário a esposa, dona Peripécia do Cachimbo Salsichão largar seus afazeres domésticos e entrar em cena para acalmar os ânimos exaltados:
— Seu Bengalo — obtemperava Brocardo. Sou um rapaz direito. Não vou fazer nada de errado. Amo a sua filha e as minhas intenções, para com ela, são as melhores...
Ao que o sogro sempre batendo na mesma tecla, argumentava, seguro de si, sem claro, arredar pé e abrir a guarda:

— Já fui jovem igual a você, meu caro. Não fazia nada errado. Quando ia para a casa da minha namorada, hoje minha esposa Peripécia, meu sogro me obrigada a dormir na garagem. Tinha um sofá velho, caindo aos pedaços, cheio de formigas e era nele que eu passava as noites. Belo dia, me enchi de razão. Esperei o desgranhado se recolher e, quando o vi roncando, pulei da garagem para o quarto da minha doce amada...

Fez uma pausa, acendeu um cigarro, tirou algumas tragadas e continuou:
— Tal ato, desde então, passou a virar rotina...
— E a Andorrinha?
— Nasceu de uma inversão...
— Inversão?
— Sim.
— Como é lá isso?
— Certa noite, ao invés de eu pular para a cama da Peripécia, ela se adiantou e caiu de paraquedas dentro da garagem, passando a dormir comigo no bendito divã.

Brocardo interrompeu o sogro e mandou a pergunta que estava entalada:
— Mas espera lá, seu Bengalo. Tem algo na sua história que não consigo digerir. As idades, digo, o tempo entre o nascimento da Andorrinha e a vinda, ao mundo, do Furquilho... acho que o senhor...
O velho fuzilou o póstero genro com uma ferocidade monstruosa:
— Cala a boca, seu verme. Por favor, saia daqui.
— Mas...
— Sem mais, nem sem menos. Vamos, ordinário, desinfeta...
— Seu Bengalo, só fiz uma pergunta...
— Você não tem o direito de perguntar droga nenhuma, tampouco de achar o que acha que deve ser achado. Aqui quem tem que achar ou “desachar”, sou eu. Puxa o carro!

Dia seguinte, após as formalidades de praxe, o depoimento de Bengalo do Cachimbo Salsichão teve início:
— Então, seu Bengalo. Onde o senhor estava quando a sua filha se projetou do vigésimo andar?
— Na sala... vendo o jornal...
— O senhor estava sozinho?
— Não. O namorado da Andorrinha se fazia prostrado ao lado dela.
— Onde eles estavam, precisamente?
— Na varanda do meu apartamento...
— Na varanda de onde ela supostamente se projetou?
— Sim.

O delegado coçou a cabeça:
— O senhor acha que ela pulou, foi empurrada, ou pior, atirada?
— Não tenho como provar, mas eu, cá com meus botões, acho que o filho de uma égua do Brocardo a atirou.
— Eles estavam juntos na varanda? O senhor confirma?
— Sim. Com certeza.
— Continue...
—... Brocardo veio aos desmunhecos. Parecia uma lubélula espavorida. Soluçando e chorando: “Seu Bengalo, pelo amor de Deus, a Andorrinha acabou de pular...”. Na hora, não atinei, e, meio que abestalhado, indaguei: “pulou de onde, para onde seu safado?”. O sujeito me olhou com cara de sonso e respondeu rispidamente: “Seu idiota, imbecil... ela se atirou aqui da sua varanda... faça alguma coisa....

O delegado antes de continuar pediu a um dos policiais que lhe trouxesse um café:
— O namorado dela, o Brocardo, pediu que o senhor fizesse alguma coisa. E que atitude o senhor tomou?
— O que qualquer pai faria. Me precipitei porta afora, ganhando as escadas saltando os degraus de três em três... minha esposa e a empregada entraram em desespero... os vizinhos apareceram do nada. O rato do Brocardo veio em meu encalço...
— E seu filho Furquilho?
— Jogando bola com os amigos num condomínio próximo ao nosso.
— Continue...
— Quando chegamos na área em que a minha filha certamente terminaria, como, de fato, encerrou com a sua desdita, me desesperei... literalmente me vi de joelhos, ao lado dela...
— Não entendi. Queira, por gentileza, ser mais claro e objetivo?

Na inocência que lhe amargurava o coração, o pai de Andorrinha agora chorando copiosamente, explicou:
— A minha ideia, seu delegado, não outra senão a de segurá-la no colo, para que não se despedaçasse no cimento do condomínio...
O delegado desferiu um forte e potente murro na mesa e se levantou abespinhado:
— Como é que é? O senhor está me tirando? Queria ampará-la no colo e evitar que se esborrachasse no chão? Foi o que ouvi?
— Sim, seu delegado. Isso mesmo. Quando topei com a minha pobre e querida filha, ali, morta, estirada, sem vida, toda coberta de sangue, da cabeça aos pés, me dei conta... meu Deus, doutor, me dei conta que a minha garotinha, ao saltar lá de cima, da varanda, ou ser jogada, sei lá, em seu curto trajeto, havia chegado primeiro...

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 24-6-2022

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