Aparecido Raimundo de Souza
Percebo, por exemplo, que é sempre a mesma bermuda curta listada de um verde desbotado, a camisa cinza igualmente carcomida, encimada por um aventalzinho preto que lembra (tirando o avental, claro) o grande Carlito quando incorporava o inesquecível Charles Chaplin. Sem falar no carrinho onde são queimadas as carnes, desapurado do “considerado essencial”, e de roldão, a negligência do tênis empretecido que segue o mesmo rastro dos desmazelos e mazanzas.
Imagino, mesmo pé no saco, o cheiro catinguento que as roupas exalam, notadamente naquelas partes onde se situa o rego da bunda suada, levando em conta que ele trabalha incansável de terça a domingo, com um único descanso às segundas. Verdade, o meu amigo em questão, está lá para atender a quem quiser provar dos seus petiscos e saborear uma estonteante cerveja bem gelada. Quanto a isso, nada a reclamar.
Voltado à indumentária, alguém levantou a hipótese que, nas segundas, quando a pitoresca figura não abre o seu comércio, a sua amada e querida esposa, dona Verônica ou a filha Micaela se dediquem, com elevado esmero e capricho a enfiarem as fatiotas na máquina e livrarem o pomposo uniforme (camisa e bermuda), tirando deles, as inhacas e os mefíticos dos dias em que o “gringo”, com a sua linguagem enrolada de língua “além fora daqui”, recepciona seus inúmeros clientes. Juro que pensei nessa saída. Lêdo engano!
Todavia, sopesando pós e contras —, mais contras que prós, não me convenci. Existem pontos soltos a serem observados. Quais? Nas segundas feiras, o Argentino se presta a correr às compras, fazendo visitas à açougues e supermercados, padarias e lojas que vendem materiais para mesas, bem ainda visitando distribuidoras, renovando os estoque de cervejas e refrigerantes, entre outros insumos necessários para que as portas do seu ganha pão não se fechem.
Nessas saídas, ele impreterivelmente é visto por vários frequentadores (incluindo eu, que moro perto), metido nos mesmos andrajos que aliás, a galera vizinha batizou como sendo “seu uniforme de todo o sempre”. Com isso, creio que o meu amigo Argentino cumpre, à risca, aquele velho jargão conhecido na língua afiada dos fofoqueiros, como a da criatura que dispõe de um só costume de batente. Ou seja, para que fique bem pontilhado, sem dúvidas a serem revistas depois. O troço do sujeito é único.
Entre altos e baixos, o desasseio que cobre a criatura não sofre variedades, inexistindo, até prova em contrário, outro adorno que substitua, à altura, o seu “sujo pelo limpo”, ao menos na engrenagem logística do “enquanto uma baciada está sendo lavada, a outra se faz literalmente em uso”.
Explicando o arranhar desse disco, sustento que a agulha teima empacar na mesma faixa musical, não permitindo que a canção vindoura, logo à frente, atinja o seu ápice para mudar um pouco a palidez dos farrapos do batidão partícipe e ativo do seu catemerino. Resumindo: o meu amigo Argentino, pelo uso dos mesmos panos, foi batizado, por conta da sua displicência, à boca solta, logicamente sem ele saber, pelos frequentadores de todos os dias, como o “Canarinho de uma muda só”.
Cá entre nós, sem espalhafatos, alcunha merecida. “Mais mau”, no meio desse furdunço todo. O apelido pegou. Caiu como luva de pelicas. Às vezes, alguns dos “mais chegados”, à revelia das duas garçonetes, Adri e Bianca, o solicitam pelo cognome “Canarinho”. “Canarinho, manda uma gelada”, “Canarinho, dois boi gordo aqui na mesa três e uma porção de batatas para a mesa oito”. Argentino, coitado, alheio ao epíteto que os seus contíguos e adjacentes lhe meteram nos costados, desligado da tomada, sequer imagina o motivo.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de São Paulo, Capital. 21-6-2022
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