Sem sair de Brasília, Barroso resolveu assustar a selva com urros retóricos
Augusto Nunes
Os meninos que chamávamos de “filhinhos de papai” viviam sob a estreita vigilância das mães. Eram elas que berravam o prenome (quase sempre composto) para intimá-los a cuidar dos deveres escolares, alimentar-se na hora certa, colocar um agasalho ou evitar más companhias. Nunca ficavam descalços, nem mesmo para disputar uma pelada num campinho de quintal. Para prevenir tosses e resfriados decorrentes de traiçoeiros golpes de vento, jamais dormiam com as janelas abertas ou embarcavam em enxurradas. Não se metiam em brigas na porta da escola. E aprendiam ainda no berçário que mamãe puniria com uma surra de assustar vizinho três pecados mortais: furtar laranjas em plantações à beira da estrada, nadar em rios, riachos ou lagoas e enveredar por mais de 20 centímetros por qualquer pedaço de mato (se fosse além disso, o pecador estaria ingressando numa selva municipal). Melhor esquecer tais tentações, recolher-se ao quarto e permanecer no topo do ranking dos melhores alunos da classe.
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Luís Roberto Barroso, foto: SCO/STF |
Bastou-me conviver na infância
com meia dúzia de filhinhos de papai para reconhecer de imediato um genuíno
integrante da espécie. Um exemplo? Luís Roberto Barroso. Alguém pode imaginá-lo
sujo de lama, num terreno baldio de Vassouras, dando caneladas e carrinhos por
trás? Ou invadindo sem sapatos nem meias o laranjal cujo dono podia aparecer
subitamente com a carabina engatilhada? Ou mergulhando nas águas escuras do
ribeirão oculto pelo matagal? Tais hipóteses são tão improváveis quanto uma
foto de Luís Roberto abrindo a facão uma picada na Floresta Amazônica. Se é que
algum dia pousou na região, Barroso só saiu do hotel para contemplar o Encontro
das Águas, visitar uma ilhota do Rio Negro habitada por índios de cordão
carnavalesco e ajudar a empunhar aquela sucuri de quartel treinada para
recepcionar amavelmente forasteiros ilustres. Mas um filhinho de papai que se
torna ministro do Supremo Tribunal Federal vira especialista em tudo, com
doutorado em assuntos que desconhece profundamente.
É
compreensível que Barroso ignore, por exemplo, que desde 2012 o Amazonas
registrou 9.128 desaparecimentos de pessoas
O ministro Edson Fachin, por exemplo, nunca deu as caras sequer num ensaio da Mangueira. Mas deve achar que a vida nos morros do Rio é tão idílica quanto a descrita em velhos sucessos musicais. Barracão de zinco sem telhado é bangalô, sinfonias de pardal anunciam o alvorecer e o morro inteiro, no fim do dia, reza a ave-maria. Só essa disfunção mental explica a decisão de proibir que ações policiais perturbem o sossego reinante no universo que só nos mapas oficiais ainda faz parte do Estado brasileiro. Se Fachin não sabe — ou finge não saber, o que dá no mesmo — que os morros cariocas se transformaram em zonas de exclusão controladas pelas mais violentas organizações criminosas, é compreensível que Barroso ignore, por exemplo, que desde 2012 o Amazonas registrou 9.128 desaparecimentos de pessoas. Desse total, apenas 295 foram encontradas.
Caso conhecesse tais números,
talvez fosse mais discreto e menos trapalhão ao tentar transformar em outro
capítulo da guerra contra o presidente Jair Bolsonaro a tragédia protagonizada
pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista inglês Dom Phillips. No
pelotão formado por combatentes togados, cabe a Barroso liderar ofensivas na
frente amazônica. Foi o que fez ao receber o pedido de ajuda encaminhado pela
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A entidade informou que
Phillips e Pereira haviam sido vistos pela última vez em 5 de junho, num rio na
reserva do Vale do Javari, perto da fronteira com o Peru, “onde desempenhavam
atividades de reforço da proteção territorial contra invasores”. No dia 10,
centenas de militares e policiais destacados para os trabalhos de busca e
resgate já haviam colhido evidências de que ocorrera um duplo homicídio e
capturado um dos assassinos. Nem por isso Barroso perdeu a chance de, em
resposta à petição da APIB, debitar na conta de Bolsonaro todos os problemas
passados, presentes e futuros da Amazônia em geral e, em particular, dos
antigos donos do Brasil.
Filhinhos de papai, quando
crescidos e poderosos, costumam vingar-se da opressão imposta pelas mães
endereçando ordens, advertências e repreensões a quem nada tem a ver com
angústias infantis. Sem sair de Brasília, o ministro resolveu assustar a selva
com os urros retóricos que permeiam a determinação amalucada: o governo federal
deveria começar a fazer imediatamente o que vinha fazendo desde que foi
informado do sumiço de Phillips e Pereira. O item 3 da “decisão” é um hino ao
ativismo judiciário: “Determino — ou reitero, caso já tenha sido
providenciado — à União, suas entidades e órgãos que: (I) adotem,
imediatamente, todas as providências necessárias à localização de ambos os
desaparecidos, utilizando-se de todos os meios e forças cabíveis; (II) tomem
todas as medidas necessárias à garantia da segurança no local; (III) apurem e
punam os responsáveis pelo desaparecimento ; e (IV) apresentem nos autos da
petição sigilosa, no prazo de até 5 (cinco) dias corridos da ciência desta
decisão, relatório contendo todas as providências adotadas e informações
obtidas”. Haja arrogância.
O parágrafo seguinte começa a
erguer o monumento à megalomania: “Sem uma atuação efetiva e
determinada do Estado brasileiro, a Amazônia vai cair, progressivamente, em
situação de anomia, de terra sem lei”. A obra é concluída com arabescos
insolentes: “Intime-se a União pelo meio mais expedito à disposição do
Juízo. Intime-se, ainda, pelo mesmo meio e pessoalmente o Exmo. Senhor Ministro
da Justiça e Segurança Pública, o Ilmo. Sr. Diretor-Geral da Polícia Federal e
o Presidente da Funai. O descumprimento do prazo assinalado implicará a
incidência de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Publique-se”.
A ausência dos militares entre os alvos sugere que o ministro não perdeu de
todo o juízo. Neste 12 de junho, com o caso esclarecido e dois assassinos na
cadeia, dois caixões foram transportados até Brasília com os restos mortais das
duas vítimas. Barroso não estava lá para recepcioná-los.
Se continuar interessado num
drama que aflige incontáveis brasileiros, gente a procurar é o que não falta.
Em 2021, desapareceram no país 62.857 pessoas — 172 por dia. Nos três primeiros
meses deste ano, só no Rio de Janeiro sumiram 1.777 crianças. Ou o ministro
pressiona com prazos e ultimatos os governantes estaduais e municipais,
responsáveis pela segurança pública, ou estará provado que só se interessa por
desaparecimentos que ajudem a apressar o sumiço do governo de Jair Bolsonaro.
Título e Texto: Augusto
Nunes, Revista Oeste, nº 117, 17-6-2022
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