terça-feira, 28 de junho de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Imprevistos de bastidores

Aparecido Raimundo de Souza

O ABIXONDRE
, cobrador e vendedor, acompanhado de duas malas pretas cheias de bugigangas entra no beco de Santa Madalena logo que termina de subir a favela do morro do Bode Barbudo. Bate palmas na porta do barraco vinte e um, espelunca que encabeça a ruela estreita de terra batida e poças de lama por todos os lados. Vem atender uma moça nova, ai pela faixa dos trinta. Embora o rosto seja aprazível, a sua figura, como um todo, se torna feia, em face dos cabelos em desalinho e a ausência de todos os dentes na boca. Abixondre cumprimenta a mulher e manda brasa expondo o motivo que o levou até ali:
— Bom dia, dona. Desculpe, o incômodo. Como é seu nome?
— Quem quer saber? — devolve a pergunta a infeliz banguela:
— Eu, em carne e osso.
— Estou vendo. Quero que me diga o seu nome e do que se trata?

Abixondre, em poucas palavras, explica:
— Meu nome é Abixondre. Sou vendedor e cobrador. Trabalho para as Lojas “Temos de Tudo”. Meu parceiro, o Elias, coisa de um mês atrás, veio aqui e vendeu umas roupas de cama para seu José Carlos Pinto. Estou à procura dele, para receber a primeira prestação. Vence hoje.
A criatura balança a cabeça sinalizando que não conhece nenhum José Carlos Pinto:
— Não me disse — insiste Abixondre — qual é a sua graça?
— Sanfonina Beliscão. Acho que não terei como lhe ajudar. Moro aqui mais de cinco anos e nunca ouvi falar nesse tal de José Carlos Pinto. Tem certeza que é este o nome?
Abixondre mostra a ficha do tal sujeito:
— Aqui, dona Sanfonina. Veja a senhora mesma. José Carlos Pinto, Favela do Morro do Bode Chifrudo, beco Pirarucu, casa vinte e um.

Dona Sanfonina se abre num sorriso esquisito e logo em seguida volta à seriedade:
— Nunca ouvi falar em tal nome por aqui. O senhor é o primeiro que aparece à cata dele. E olha que conheço todo mundo. Não me esqueceria, em face do p-i-n-t-o...
Abixondre sorri e insiste:
— Puxe pela mente, dona Sanfonina. É muito importante...
— Sei como é. Meu marido também vive de cobranças e chega em casa estressado e reclamando. O que posso fazer pelo senhor, no momento, é o seguinte: esclarecer que esta viela não é a Pirarucu. O número da casa bate, mas o beco...
— Este não é o beco Pirarucu?
— Não senhor...
— Aqui não é a favela do Morro do Bode Chifrudo?
— Não senhor... aqui é a favela do morro do Bode Barbudo. O senhor deve ter se enganado de bode.

— Mais essa agora. E por acaso existe aqui pelas redondezas alguma outra favela que leve esse nome?
— Qual deles, senhor? Favela do Morro do Bode Barbudo, ou Favela do Morro do Bode Chifrudo? O único por aqui é o que o prezado está pisando nele. Realmente, seu Abixandro, aqui é a casa vinte e um. O beco é que não confere. O morro, como acabei de dizer, e repito, é o da Favela do Morro do Bode Barbudo e o beco, o de Santa Madalena.
Abixondre se abre num gesto de poucos amigos. Fala:
— Dona Sanfonina, meu nome é Abixondre e não Abixandro.
— Desculpe, moço. Entendi errado.
— Sem problemas.
— Se o senhor tiver com vontade e disposição nas canelas para subir mais um pouco, lá para cima, com essas duas malas pesadas, encontrará uma pracinha. O beco procurado, este Pirarucu é um dos últimos. Fica duas quadras depois da pracinha. Continue subindo... é uma boa caminhada... a vista da cidade, lá do cume, se torna eletrizante... surreal... compensa o sacrifício...

Abixondre agradece, se despede de dona Sanfonina passa as mãos nas duas malas e segue escalando barranco acima. Anda bem quase um quilômetro, vez que o caminho às vezes segue para o lado direito, outras pende para o esquerdo. A se ver na mencionada pracinha, tira do bolso um lenço e enxuga o suor. A camisa está empapada. Espia em derredor. Crianças acompanhadas de suas respectivas mamães, se divertem num parquinho com brinquedos caindo aos pedaços, enquanto um bando de moleques joga bola. Abixondre se aproxima de um estabelecimento comercial onde uma tabuleta com letras em garranchos vermelhos anunciam o “Empório do Zé Lagarto”. Ao ingressar, topa com um senhor em idade avançada recostado no balcão:
— Bom dia, cavalheiro. Pois não?
— Bom dia, meu amigo. O senhor deve ser o seu Zé Lagarto?
— Sim, sou o Zé Lagarto, às suas ordens...
— Poderia me dizer, por favor, onde fica o Beco do Pirarucu?

O velhote sai de seu posto, pega o estrangeiro pelo braço. Se achega com ele até a porta e aponta, dedo em riste, para um determinado local:
— Está vendo a quitanda?
— Sim.
— Ao lado, tem uma barbearia. Encostado à ela, está o Beco do Pirarucu. Por mera curiosidade. Quem o senhor caça por estas bandas?
Abixondre pede um café enquanto exibe a ficha:
— Procuro pelo seu José Carlos Pinto.
— José Carlos Pinto?
— Sim! Conhece?
— Nunca ouvi falar...
— Qual o número dele no Pirarucu?
— Vinte e um.

O vendeiro coça a cabeça:
— No vinte e um deste beco não tem nenhum José Carlos Pinto.
Abixondre insiste:
— O senhor tem certeza?
— Absoluta. Todo mundo por aqui conhece todo mundo. Sabe o nome da esposa dele?
— Não.

Adentra, nesse momento, um rapazola com um carrinho de mão. É o garoto que faz a entrega das compras nos casebres dos radicados nas proximidades:
— Deixa eu perguntar por um morador aqui do pedaço. É o Catatau, meu funcionário. Catatau, ali no buraco do seu beco, tem algum Pinto, digo, um José Carlos Pinto?
O tal do Catatau se vira e, antes de responder, cumprimenta os dois homens a sua frente:
— Bons dias. José Carlos Pinto? Não conheço. Sabe o número do barraco dele?
— Vinte e um.

— Seu Luiz, o beco é pequeno. Vai do um ao trinta, mas os números não seguem uma ordem cronológica. Tem o um, o cinco, o dezenove, o trinta... depois cai para o doze, desce para o sete... logo adiante, volta à regredir para o dois, e, em seguida, o dez. Cada morador prega no seu “quadrado” o número que lhe dá na telha...
— E o José Carlos Pinto?
— O que tem ele?
— Nunca ouvi falar. A única pessoa nova no pedaço é o seu Marreta. Se esconde nos fundos da dona Mercedes.

Engalanando o pedaço surge, do nada, a espevitada e gostosa Mercedes Caninana. Mulher de belas pernas, corpo de princesa. De fato, aos vinte e cinco, tudo nos conformes, linda de morrer. Chega, pede um refrigerante e um pastel de carne. Todos se voltam quando ela se acomoda numa das mesas. A pérola anda nos trinques. Se veste como se fosse dama da alta sociedade.

O vendeiro assim que serve o pedido, indaga pelo José Carlos Pinto:
— Senhorita Mercedes, desculpe a indiscrição. Conhece o seu José Carlos Pinto?
— Nunca ouvi falar...
— Aquele senhor que sempre passa por aqui com a senhora. Sabe onde ele mora?
— Sei, claro. O senhor se refere ao Marreta? É meu inquilino! Mora num puxadinho que aluguei para ele, contíguo ao meu cafofo. Um bom sujeito. Não tem Pinto. Posso saber o que o senhor quer com ele?
— Na verdade, senhorita Mercedes, eu nada. O senhor é que está aos calcanhares dele. No que fala, aponta o Abixondre.
Mercedes se levanta da mesa e caminha até onde Abixondre, em pé, se assemelha a uma estátua:
— E o que o senhor quer com o velho Marreta?
— Senhora, meu parceiro Elias, vendeu para o senhor José Carlos Pinto, umas peças de roupas e eu vim receber. Um vende, o outro recebe... entretanto, acho que o seu Marreta não é quem realmente procuro...

Mercedes se faz de sonsa. Indaga:
— Pelas suas malas, por acaso o senhor vende alguma coisa?
— Acertou na mosca, senhorita.
— Que sorte, a minha. Pretendia descer para comprar uns panos novos. Olhe, tenho interesse em adquirir algumas novidades. Se puder fazer a gentileza de me acompanhar....
— Será um enorme prazer.
Mercedes Caninana, após o rápido lanche, sai acompanhada de Abixondre ajudando, inclusive, o mascate a carregar uma das malas:
— Senhorita, por gentileza, sejamos francos e honestos. Por que me pediu para vir até sua residência?
— Serei bem clara e sucinta. Ninguém aqui no morro da Favela do Bode Barbudo sabe que o Marreta é algo mais que meu locatário...

Põe em prática uma pausa ensaiada. E segue com seu relato:
— Lá no asfalto, onde mora, Marreta ostenta o seu Pinto. É um empresário renomado. Tem mulher, uma penca de filhos e blá-blá-blá... a gente se conheceu... ele me fez um favor e, desde então, passamos a ter um chamego... o senhor sabe como é. Para que pessoas enxeridas não venham lá dos quintos nos perturbar... como o senhor pode ver... a minha Marretada no Pinto do velho senhor Marreta, deu certo. Posso contar com a sua total discrição, no sentido de não revelar para ninguém que o Marreta, é, na verdade, o seu procurado José Carlos Pinto?
— Pelo amor de Deus, senhorita. Vamos mudar o rumo da prosa. Tem a minha palavra. Já esqueci do seu Pinto. Marreta é o nome do cidadão que vim cobrar a prestação vencida...
A beldade mete a chave e empurra a porta de entrada. Os dois somem, aos risos, para dentro da humilde residência.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 28-6-2022

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